quarta-feira, 6 de abril de 2005

Brilho

Uma das nossas grandes felicidades é que o tempo nunca acaba. É nossa culpa, isso, ainda bem. Ainda me recordo vividamente de quando atravessava aquela noite avenida de espírito magoado. Destroçado, avançava os passos como se estivesse a derrubar as muralhas de Alexandre Magno a cada estreitar dos olhos tristes. O aparelho de rádio fazia-me chegar os ruídos de multidão extasiada, fulgor esse que me ia aquecendo os irónicos e poucos esgares. Nessa noite, eu reparava nos pormenores, ávido de bestas e flechas flamejantes que me chegassem às mãos pelo coração. Tudo era nítido sem se distinguir o negro do resto. Um negro de vida nunca antes visto, fazendo o tempo repousar eternamente num momento celerado. Aquela batalha era demasiado fogo, mas eu soube que era a minha. Quem olhasse ver-me-ia, estou certo, a única mancha ardente no meio do escuro. Eu corria mais determinado que a imaginação, demorou até eu perceber de novo que é do dia que se faz noite e não vice-versa. As vozes levantavam-se e preenchiam-me os sentidos confusamente com a confusão que eu ansiava. Perfeito. Desejava cuspir barras de aço assassinas do que me apetecia que não respeitassem, desejava que todos me olhassem o vazio transparente do peito e que se empoleirassem numa montanha que eu sustentasse com as costas. Queria que vissem que era o mais forte a preparar poções de Merlin, feitiços de quebrantar oceanos, transportando o Molière e as pancadas a todas as ilhas inóspitas onde habitassem os sozinhos. Insisti para que todos me vissem roer e mastigar a democracia dos comparsas mais presumidos só para que houvesse desculpa de me enfrentar. Ousaria, com ventura, envergar todas as mágoas previstas das Sibilas, audácia que cumpriria até não haver mais que lamentar ou celebrar. Esmaguei as cinzas e lancei a Fénix lacrimejante.
Na minha noite, as limitações escolhi-as eu. Imaginários jarros de vinho transbordando impaciência e profecias de insultos de ogre, agarrei-os e deitei-os prédios acima, apressei-me no vento e fugi para onde precisavam de mim. Hoje é noite e vejo claramente. Apercebo-me de que o tempo não acaba nunca, que os sorrisos são eternos e que me apetece navegar para sempre, até chegar.
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