quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006

Desconforto

Qual é o mal, se Deus não proibiu?
Qual é afinal o mal, se há fome, sede, dor, sono constante, tosse, tão pouco original, é todo o dia.
Este homem é igual todo o dia, todos os dias. É, de profissão, vasculhador, especialista em caixotes de lixo. Não devia estar ali, onde o encontrei - em minha frente a dois metros - quando saí da loja.

(A partir da meia noite esta cidade é silenciosa, de silêncio composto por uma espécie de som estático sereno, e aqui e ali uma sirene vagarosa.)

O que este homem fez foi unicamente estender a mão, nem sei se foi exactamente pedir - pedir moedas, ou conforto do estômago, evidentemente -, mas foi esta a sua única atitude. A garrafa que trazia na outra mão ficou lá, a face desta pessoa não sofreu nenhuma alteração, nem micrométrica, continuou sem expressão alguma. É essa a expressão que lhe permite ser sempre o mesmo, pensar sempre o mesmo, não fala, não precisa de falar. Nem já deve lembrar-se de o fazer. Arma-se somente estendendo a mão, e já se sabe que esta arma, em todo o mundo e a todo o instante, é vencida e aniquilada por bombas, minas, balas e temperaturas nada cívicas às quatro horas da madrugada.

Não sei se este homem, cujo nome é a escuridão da pele, pensa que alguém faz alguma coisa por ele, ou se pensa que faz alguma coisa por alguém, ou por si. Só me foi impossível, por instantes, aperceber-me de alguma realidade que estivesse fora do corredor que ia desde ele até mim quando mexeu apenas ligeiramente os músculos do braço e esticou os ossos dos dedos. Nem que a avenida se rebentasse de napalm. . .
O que pensarão esses deuses das igrejas da cor desta palma de mão, e da minha hipocrisisa?
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