No 52... já ninguém mora! *
* texto inspirado e publicado, em resposta ao desafio do Finúrias, no Ministério da Soltura.
Deparei-me com um senhor de óculos de um amarelo escuro, já quase plenamente calvo, com aspecto cansado, e estranhamente envergando uma abundância de agasalho para o tempo de praia que fazia. Apelidou-me de jovem pois já devia ter percorrido uns setenta anos, e indagou-me acerca da localização do Centro de Pesquisas Farmacêuticas e Químicas. Acrescentou, Sei que é por aqui mas um rapaz fez-me já andar às voltas com o que me indicou, disse-me que era para esse lado, e o malfadado homem apontou para o sítio de onde vim. Eu disse, É verdade, pode-se ir por lá, mas venha comigo que é mais perto por aqui, e vou lá passar. Ofereci-me também para levar o mais pesado dos sacos que carregava, ao que acedeu. Lá dentro iam batatas.
Já antevia um passeio silencioso dado o evidente carácter pacato do meu interlocutor, mas porém assim não foi. Antes contou-me que a sua demanda era quase sem esperança. Por morar num lugar junto de uma descuidada fossa séptica a céu aberto, a sua saúde ter-se-ia degradado. De médico em médico, hospital em hospital, e já neste centro de investigação de farmácia tinha buscado auxílio em vão. Queixava-se há anos de um frio imenso e petrificante dentro de si, É por isso que ando devagar. Explicou-me que ninguém lhe detectava o problema que, Pode ser a nível capilar, sim, mas de certeza que é na minha pele, pois se vivo naquelas condições sanitárias!. Isto dizia debalde aos doutores, que o rechaçaram sempre, sempre ignorado. Mesmo eu só lhe soube dizer, entre as suas frases, que o que ele pensava tinha lógica, que o seu mal era por demais estranho, e que fazia bem buscar apoio em sítios diferentes.
Condescendente das minhas réplicas inconsequentes, continuou o seu relato, explicou como tinha sido despedido de um emprego estável na junta de freguesia, onde não suportava estar no inverno ao ponto de congelar; como tinha acompanhado o frio cancro que lhe tomou a esposa, que viu friamente morrer, pleno de frio. De tudo isso sobrou o frio, confessou-me, e olhou absorto o caminho.
De súbito, levou as mãos a um saco e mostrou-me o seu conteúdo, visto que eu era um “jovem que parecia compreender”. Tinha uma série de objectos oriundos da fossa. Desabafou, Se pudesse até fazia com que analisassem as minhas roupas, a ver se não enctravam magotes de gases! E de novo se calou.
Como faltasse ainda um pouco de caminho, e presumia que o silêncio iria entristecer o meu companheiro aflito de memórias, perguntei onde ele morava, ao que me respondeu, Na Pontinha, essa bela terra, com desapontamento na voz. Admirei-me, e foi quase com um inapropriado entusiasmo que lhe revelei que já lá tinha morado uns anos, na avenida dos Bombeiros Voluntários. Esses são outros, reclamou, ligando para lá, eles analisam o perigo da fossa, mas calam-se quando pergunto porque não lhe arranjam solução. Se já lá morou talvez conheça então a tristeza do beco das Fontanelas... Pergunto se lá morava há muito. Fez um silêncio como quem chama a atenção ao que vai ser dito, e seco, de orgulho e impotência, exclamou, 40 anos.
Quase chegados ao seu destino, perguntei-lhe se alguém o aguardava no centro, ao que ele replicou que, Não, venho com Deus ou com o Diabo. Parados à entrada que lhe indiquei, esfregou a cara e, encarando-me, prosseguiu a reflexão, Se mesmo o amigo me ajudou a vir até aqui, e eu retribuiria se pudesse, porque é que não há uma única alma que olhe para o meu caso? E, depois de uma pausa breve: Porque é que nós não podemos viver em paz?
Desejando o melhor para o outro, despedimo-nos, balbuciei algo contra o egoismo humano, e de tão estupefacto só depois me lembrei da pessoa que me esperava, e só mais tarde ainda reparei que tinha inadvertidamente privado o homem do seu saco de batatas!
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No dia seguinte, procurei à hora do jantar a moradia do malogrado senhor, que tinha ficado agradecido apenas por lhe ter indicado o caminho e com ele ter conversado durante uns minutos. O que para mim tinham sido breves instantes, teriam talvez sido bem mais na sua idosa mente, bastante sensível a quem quer que lhe desse atenção, neste mundo. E tendo também isso em conta não poderia nunca deixar de lhe entregar as devidas e esquecidas batatas.
Descobri o beco que antes tinha enganosamente admitido conhecer, após reviver velhas sensações de quando era ali morador, inocente de todas as reviravoltas que a vida tem para toda a gente. O beco era consideravelmente grande, com prédios baixos, desiguais e afastados, notando-se um cheiro nauseabundo que não esperava encontrar, mas que seria de esperar se me recordasse apenas das palavras do velhote. O sítio estava deserto, mas ouviam-se algumas pancadas, lentas, arrastando-se tarde fora e secas. Reparei que provinham de um indivíduo de boné, tichârte e calças sujas que, paciente, pregava umas tabuinhas na porta de uma casa velha, caindo aos bocados. De repente, levantou um vento inesperadamente frio, não forte, mas penetrante e incomodativo. Aproximei-me e encarei o sujeito do martelo, a quem perguntei onde habitava o senhor, o qual tentei descrever da melhor forma que me era possível. Ele pareceu não reagir, não colaborar. Decidi-me a acrescentar, numa última tentativa, o que se revelou a característica decisiva, Um senhor que tinha uma estranha doença que o fazia ter frio a toda a hora, disse eu atabalhoado. A isto, ele olhou-me pela primeira vez e disse, Ah, procura o Baltasar, chamavam-lhe o Baltasar do gelo. Ele vive aqui, é engraçado. Ou pelo menos vivia, hoje de manhã finou-se. Houve um incêndio grave na cozinha que o levou. Agora aqui no 52... já ninguém mora.
As palavras ressoavam nos meus ouvidos quando me afastava, senti o peso das batatas e perguntei-me sobre a importância que afinal uns meros quilos de batatas podem ter neste mundo, se no tempo de os transportar ao outro lado da cidade, morre uma pessoa.
Tomou conta de mim um grande lamento, mas descansei quando imaginei o senhor Baltasar perante as fortes, laranjas, quentes labaredas, sorrir pela primeira vez desde que perdeu a mulher, sentir pela primeira vez a pele desde que perdeu a saúde. O senhor Baltasar enfrentando, entregando-se à chama, a única que nos últimos anos de vida o compreendeu e aqueceu.
Atirei-me num passo mais ritmado e segui o meu caminho.
Estando eu caminhando, na rua, em direcção a um encontro importante e embrenhado em pensamentos e ideias, oiço uma voz idosa chamar, Se o jovem não se importava de dar uma ajudinha, voz essa cuja origem demorei ainda um instante a descobrir.
Deparei-me com um senhor de óculos de um amarelo escuro, já quase plenamente calvo, com aspecto cansado, e estranhamente envergando uma abundância de agasalho para o tempo de praia que fazia. Apelidou-me de jovem pois já devia ter percorrido uns setenta anos, e indagou-me acerca da localização do Centro de Pesquisas Farmacêuticas e Químicas. Acrescentou, Sei que é por aqui mas um rapaz fez-me já andar às voltas com o que me indicou, disse-me que era para esse lado, e o malfadado homem apontou para o sítio de onde vim. Eu disse, É verdade, pode-se ir por lá, mas venha comigo que é mais perto por aqui, e vou lá passar. Ofereci-me também para levar o mais pesado dos sacos que carregava, ao que acedeu. Lá dentro iam batatas.
Já antevia um passeio silencioso dado o evidente carácter pacato do meu interlocutor, mas porém assim não foi. Antes contou-me que a sua demanda era quase sem esperança. Por morar num lugar junto de uma descuidada fossa séptica a céu aberto, a sua saúde ter-se-ia degradado. De médico em médico, hospital em hospital, e já neste centro de investigação de farmácia tinha buscado auxílio em vão. Queixava-se há anos de um frio imenso e petrificante dentro de si, É por isso que ando devagar. Explicou-me que ninguém lhe detectava o problema que, Pode ser a nível capilar, sim, mas de certeza que é na minha pele, pois se vivo naquelas condições sanitárias!. Isto dizia debalde aos doutores, que o rechaçaram sempre, sempre ignorado. Mesmo eu só lhe soube dizer, entre as suas frases, que o que ele pensava tinha lógica, que o seu mal era por demais estranho, e que fazia bem buscar apoio em sítios diferentes.
Condescendente das minhas réplicas inconsequentes, continuou o seu relato, explicou como tinha sido despedido de um emprego estável na junta de freguesia, onde não suportava estar no inverno ao ponto de congelar; como tinha acompanhado o frio cancro que lhe tomou a esposa, que viu friamente morrer, pleno de frio. De tudo isso sobrou o frio, confessou-me, e olhou absorto o caminho.
De súbito, levou as mãos a um saco e mostrou-me o seu conteúdo, visto que eu era um “jovem que parecia compreender”. Tinha uma série de objectos oriundos da fossa. Desabafou, Se pudesse até fazia com que analisassem as minhas roupas, a ver se não enctravam magotes de gases! E de novo se calou.
Como faltasse ainda um pouco de caminho, e presumia que o silêncio iria entristecer o meu companheiro aflito de memórias, perguntei onde ele morava, ao que me respondeu, Na Pontinha, essa bela terra, com desapontamento na voz. Admirei-me, e foi quase com um inapropriado entusiasmo que lhe revelei que já lá tinha morado uns anos, na avenida dos Bombeiros Voluntários. Esses são outros, reclamou, ligando para lá, eles analisam o perigo da fossa, mas calam-se quando pergunto porque não lhe arranjam solução. Se já lá morou talvez conheça então a tristeza do beco das Fontanelas... Pergunto se lá morava há muito. Fez um silêncio como quem chama a atenção ao que vai ser dito, e seco, de orgulho e impotência, exclamou, 40 anos.
Quase chegados ao seu destino, perguntei-lhe se alguém o aguardava no centro, ao que ele replicou que, Não, venho com Deus ou com o Diabo. Parados à entrada que lhe indiquei, esfregou a cara e, encarando-me, prosseguiu a reflexão, Se mesmo o amigo me ajudou a vir até aqui, e eu retribuiria se pudesse, porque é que não há uma única alma que olhe para o meu caso? E, depois de uma pausa breve: Porque é que nós não podemos viver em paz?
Desejando o melhor para o outro, despedimo-nos, balbuciei algo contra o egoismo humano, e de tão estupefacto só depois me lembrei da pessoa que me esperava, e só mais tarde ainda reparei que tinha inadvertidamente privado o homem do seu saco de batatas!
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No dia seguinte, procurei à hora do jantar a moradia do malogrado senhor, que tinha ficado agradecido apenas por lhe ter indicado o caminho e com ele ter conversado durante uns minutos. O que para mim tinham sido breves instantes, teriam talvez sido bem mais na sua idosa mente, bastante sensível a quem quer que lhe desse atenção, neste mundo. E tendo também isso em conta não poderia nunca deixar de lhe entregar as devidas e esquecidas batatas.
Descobri o beco que antes tinha enganosamente admitido conhecer, após reviver velhas sensações de quando era ali morador, inocente de todas as reviravoltas que a vida tem para toda a gente. O beco era consideravelmente grande, com prédios baixos, desiguais e afastados, notando-se um cheiro nauseabundo que não esperava encontrar, mas que seria de esperar se me recordasse apenas das palavras do velhote. O sítio estava deserto, mas ouviam-se algumas pancadas, lentas, arrastando-se tarde fora e secas. Reparei que provinham de um indivíduo de boné, tichârte e calças sujas que, paciente, pregava umas tabuinhas na porta de uma casa velha, caindo aos bocados. De repente, levantou um vento inesperadamente frio, não forte, mas penetrante e incomodativo. Aproximei-me e encarei o sujeito do martelo, a quem perguntei onde habitava o senhor, o qual tentei descrever da melhor forma que me era possível. Ele pareceu não reagir, não colaborar. Decidi-me a acrescentar, numa última tentativa, o que se revelou a característica decisiva, Um senhor que tinha uma estranha doença que o fazia ter frio a toda a hora, disse eu atabalhoado. A isto, ele olhou-me pela primeira vez e disse, Ah, procura o Baltasar, chamavam-lhe o Baltasar do gelo. Ele vive aqui, é engraçado. Ou pelo menos vivia, hoje de manhã finou-se. Houve um incêndio grave na cozinha que o levou. Agora aqui no 52... já ninguém mora.
As palavras ressoavam nos meus ouvidos quando me afastava, senti o peso das batatas e perguntei-me sobre a importância que afinal uns meros quilos de batatas podem ter neste mundo, se no tempo de os transportar ao outro lado da cidade, morre uma pessoa.
Tomou conta de mim um grande lamento, mas descansei quando imaginei o senhor Baltasar perante as fortes, laranjas, quentes labaredas, sorrir pela primeira vez desde que perdeu a mulher, sentir pela primeira vez a pele desde que perdeu a saúde. O senhor Baltasar enfrentando, entregando-se à chama, a única que nos últimos anos de vida o compreendeu e aqueceu.
Atirei-me num passo mais ritmado e segui o meu caminho.
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