quinta-feira, 8 de março de 2007

Ginecartografia

Para mim és hoje uma rua de Lisboa. Não uma que já havia, mas uma que passou a haver, começou a ser construída no dia em que te conheci. E não foi necessário quase tempo nenhum para começar a odiar-te de todo o meu coração, foi muito fácil. Nem compreendia quem teu amigo fosse, a não ser, evidentemente, por interesse próprio, já que a amizade tem limites, e eu traçava-os no desperdício desconfortável que era aturar-te, a ti, que lançavas no ar uma espécie de pólen grudante com o teu nome inscrito quando te movias, cativavas multidões sorrindo; que falavas muito de mim mas nunca para mim.

Na altura, Lisboa era um turbilhão cheio de tudo, e nós éramos velejadores insanos por gosto. Nem julgo que tivesse algo que se pudesse designar por consciência – vivia mais ou menos acompanhado por umas palavras de monótono remorso e confusão repetidas na minha cabeça que afastava constantemente, substituindo por nomes de mulheres e verbos frenéticos e sujos, e nomes de mais algumas mulheres e novos verbos fantásticos. Tu eras uma mulher, mas nunca te ficaste por um nome, eras a teimosia em puro estado líquido, a inconveniência personificada. Lindo serviço, ironizavas tu de cabeça no ar quando me apanhavas de óculos escuros às onze da manhã de um dia em que mais deveria ter acordado pela hora do jantar. Já sabia odiar-te de cor, assim que sentia esse aroma balsâmico que espalhavas entrar nas minhas redondezas, e tornavas diariamente essa tarefa muito fácil. Como naqueles dias em tua casa, com a tua mãe a servir chá e bolos, com o teu pai a ler o jornal em frente à televisão dos mil decibéis, e eu lá, com a desculpa do estudo, raios partissem o estudo ao meio, cada pergunta que me fazias era porque sabias que eu não sabia, cada piada que eu dizia tinha de ser explicada. Tanto estudo, eu acho que ainda ia lá para tentar estudar-te, continuei indo numa tentativa de compreender como conseguias irritar-me tanto.

Tentei ainda desistir de ti, passei a falar-te só de colegas muito femininas e jogos de futebol, mas conseguias sempre que eu caísse e desaparecesse nos teus jogos marciais. Desde sempre me embalaste nos teus menosprezares, deitavas redes de insinuações para descanso meu. Tentei desistir de ti e de tudo isso, mas detestava-te demasiado.

Nos parques desta cidade aprendi a ler nos teus olhos. Tudo o que lia atormentava-me, maldisse tantas vezes saber essa língua. Castanhos escuros, pareciam cada dia ter um novo tom de negro. E tu não só sabias que eu te sabia ler, como sabias fazer-me ler o que querias, sempre. Que torturas podias tu, mulher de vários nomes, inflingir ininterruptamente? Dizias a todos o que eu era, preto no branco, logo eu, que nunca tinha sido nada, e queria continuar assim. Reinventavas a minha miséria esculpindo-me os olhos, lábios, orelhas, nuca, com as mãos. Odiava-te, e desde que me esculpiste passei a odiar-te como se odeia a um criador de quem se conhece todos os cheiros e jeitos.

Se algum vez te feri, foi de propósito, e de certeza que não foi facilmente. Não porque tivesses um espírito tão titânico assim, mas porque me conhecias, melhor do que eu próprio. Quando estudei no estrangeiro fui decidido a conseguir desistir de ti, deixar diluir esse ódio na distância.




Quantos dias passaram até me telefonarem de Portugal? Dois? Quinze? Acidente, fulano não conseguiu travar a tempo. Falha mecânica. Está-se a investigar, tem calma. Dou em doido se não me disserem a verdade.



Quando voltei, Lisboa não tinha ruas, o caminho do aeroporto a tua casa foi um vácuo. Cheirava lá a flores de vasos, ainda hoje cheira, nunca mais lá tornei. Odeio que tenhas morrido, do fundo de mim, do que eu sou, daquilo que me mostraste que eu podia ser. Odeio a imagem da tua casa vazia na minha mente – para mim és hoje uma rua de Lisboa, luminosa e de passeios muito largos, onde a cidade começa e acaba - odeio que a tua lápide exista, odeio ver lá palavras que eu escrevi antes de conseguir ter coragem de tas dizer. Tenho saudades tuas.

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