sexta-feira, 16 de março de 2007

Recordações para J.

Segundo me apercebo agora, tive uma infância bastante frágil. Não que fosse desprotegido. Mas as imagens que sobrevêem quando faço um esforço por me recordar dos tempos de criança são apenas mãos, enormes, capazes de me esmagar em dois segundos, mãos estranhas, escavadas. E os adultos para a minha visão de rapaz de poucos anos de idade eram então entidades capazes de apertar o que quisessem de mim até esfolar, quando quisessem. A minha mãe tinha uma pele finíssima nessa região do corpo, mas no entanto eram de uma proporção desmesurada, sempre maiores do que eu. Eventualmente aprendi a viver com elas, a não ter tanto receio de usar óculos por estarem ao alcance de todas as mãos, mas ainda hoje, adulto feito, me surpreendo com o tamanho minúsculo das minhas próprias mãos.
Sempre notei uma correlação muito interessante que talvez passasse despercebida à maioria das gentes: uma gargalhada tinha um efeito nas mãos alheias que nenhuma outra coisa que eu fizesse às pessoas provocava. Quando as pessoas riam, quando se começava a ouvir o som da alegria ou gozo, as suas mãos deixavam de ter a pose ofensiva que ocupavam sempre para a minha vista. Elas mostravam, então, outra disposição, coçavam o rosto, coçavam a barriga, juntavam-se em redor dos narizes. As mãos fundas dos homens desapareciam, nem que por segundos, segurando-se uma na outra por detrás das suas nucas. Os indicadores apontavam. E quando calhava, então, o riso dobrar nas pessoas, esses seus apêndices já dançavam, mostravam sensibilidade, batiam no próprio corpo mostrando uma vulnerabilidade a que eu procurava agarrar-me sempre. Não sei porque vivi obcecado com esse medo de estaladas, mas consigo directamente relacionar isso com a necessidade absurda que ainda hoje tenho de fazer as pessoas rir.

Gira. Era uma palavra que ouvia com bastante frequência, gira, normalmente com o complemento daqui p’ra fora, assim gritavam os manos se eu aparecia. Fui o quarto filho de uma série de quatro, e penso que a nenhum elemento da família restava já paciência para um puto. A minha Nanó, a avó materna, morava connosco e era quem tinha sempre saia para mim. Naturalmente gravitava em seu redor, e já que não me lembro de a ver sem estar ela no seu tricot, as suas mãos nunca apresentaram sequer resquícios de ameaça. A Nanó tinha-me ali ao pé, foi ela quem até me ensinou as cores e o seu efeito nas pessoas, bem como a contar o tempo nas diferentes velocidades de que ele se usa para passar por nós. Perante a Nanó eu nunca tive de me esforçar para parecer ridículo de forma a afastar os seus membros superiores da minha vista. De maneira que, já velhinha, quando viu que me tornara num fazedor de risos profissional, foi a única que estranhou e perguntou o que era exactamente isso. Eu não lhe disse que ia escrevinhando piadas nos rebordos dos jornais, nem que ia aos bares da cidade contar piadas daquelas que maldizem das pessoas famosas. Limitei-me a fitá-la bem fundo nos olhos, estiquei os lábios, e ri com as narinas, ficando alegre e calmo. Sabia que a Nanó correspondia sempre a isto com o seu riso compreensivo, sabia que isto a bem dispunha e a meu favor, e por isso segui esse meu instinto. Só depois retorqui Ora, e a Nanó acredita nisso que lhe dizem?, isso de comediante é o que me chamam lá no emprego por estar sempre bem disposto. Não menti muito.

Certa vez chamaram-me para um dos meus números numa altura bem inconveniente. Disseram que era coisa bem simples, que precisava apenas de aparecer com os meus dentes rebrilhantes e ir abrindo os braços enquanto contava as historietas de que me lembrasse, mesmo se não estivessem na vanguarda das graças - ciência essa com que ciosamente preenchia os meus dias, e que servia de escapatória nas alturas em que não conseguia chorar embora tivesse disso uma forte vontade. Calculo que não podemos ser bons em todas as profissões, e lacrimejar é algo para o que não fui talhado. De facto, que nem me preocupasse era o que eles diziam, onde eu tinha de actuar era no Centro de Reabilitação Social, casa que gozava de um anfiteatro bastante portentoso que já me tinha visto enfrentar fortes plateias, mas porém com a diferença de que desta feita iria actuar mesmo para os que nessa casa esperavam infinitamente uma reabilitação social. Os tolinhos, apelidavam-se assim, gente que conseguia conjugar grandes níveis de alegria e aborrecimento, e apenas isso. Eram as pessoas que, por doença ou atraso, estavam apartadas daquilo que chamamos de real, longe dos suores e correrias diárias na urbe, longe do horário nobre da televisão antes de deitar, longe dos impostos e dos filhos, das notícias de bombas e minas que encarceram para sempre um e outro ser humano, e milhões de outros seguindo esses.
Acedi ao não-desafio, precisava do dinheiro, e imaginei que ninguém quisesse entreter essas almas no dia de aniversário do Centro.
Sou sempre preocupado com o tipo de auditório que vou encontrar. Preparei umas graçolas assentes em lugares-comuns da comédia, as piadas que comecei a contar em adolescente, aquelas que achei que estariam próximas do nível de atenção que me ia ser disponibilizado pelos ouvintes. Entrei sereno no palco sabendo o que me esperava, e vi isso confirmado ao me deparar com umas centenas de indivíduos em poses atípicas, quer por estarem em cadeiras de rodas, quer por terem constantes trejeitos com os braços e pescoços, quer aqueles que me ouviam com o olhar fixo na cadeira defronte deles. Acompanhantes, apenas alguns, e enfermeiros na distância. Saudei a plateia, apresentei-me, e sem esperar segui o meu caminho, fiz referência ao calor que fazia lá fora e que me teria impedido de dar com a casa, quando dera por mim estava no Jardim Zoológico a pentear macacos, a contar piadas a lontras, tudo isto mentiras engraçadas que lhes contava, quando a verdade é que estava no palco imitando leões e golfinhos a tentar arrancar a primeira risada geral, o ópio do meu ofício.
Não saltava essa gargalhada total, alguém ia rindo à minha confissão de ser um zero no futebol, outros sons iam sendo emitidos de boa disposição, sempre bem dispostos, reparei que todos riam, à sua maneira. Demasiado, até. Uns apontavam para mim, riam com a saliva toda que tinham na boca, exclamavam vocábulos só deles, riam, riam, às vezes de mim, nas outras comigo. Perdi o norte, respirei fundo e pela primeira vez desejei conseguir por momentos serenar uma grupo alegre de pessoas. Insultava os patetas com os meus botões, resisti para não disparatar com piadas agressivas. Até que me inebriei de vez, junto com eles. Percebi. O que senti naquela altura não é um estado de espírito bem nítido, mas compreendi que não interessava tanto o que eu dizia, ou de quem falava. Aquelas pessoas estavam comigo, estavam rindo, e pela primeira vez não era de eu me assumir ridículo, ou dizer isso de outrém. O riso, para eles, era uma própria linguagem com que controlavam o fluxo de emoções que transmitiam para o exterior. E quando me imiscuí nessa linguagem, mais simples e sincera que as anedotas, senti-me pela primeira vez num grupo onde todos tinham as mãos do tamanho das minhas.
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