domingo, 25 de outubro de 2009

Quase-revolução

Uma manhã, como qualquer outra enevoada manhã naquela cidade, deu-se o súbito fenómeno de todas as fontes, repuxos, aspersores e demais orifícios de onde provinha água, suspenderem a sua obra, o mesmo que dizer que aparentemente secaram. Sendo verão, mais que em qualquer outra época do ano, é junto a um destes oásis o sítio que, a esta altura da aurora citadina, os mendigos desta cidade escolhem para frequentar, refrescar, lavar aquelas partes do corpo que conseguem lavar publicamente, e saciar a sede e a fome em simultâneo, na falta de algo mais sólido para entreter os interiores.
Dada a recente secura, todas estas almas habituadas à falta de fortuna despertaram perplexas, não estavam habituadas à ideia de que podiam vir a sentir que estavam privadas de alguma coisa que tinham garantida, simplesmente porque não achavam que tinham nada garantidamente.
Este episódio nunca dantes visto numa cidade destas dimensões deu origem a uma espécie de diáspora, um sair dos seus nichos habituais por parte dos vagabundos urbanos, que começaram nos dias seguintes a ser vistos vaguear na cidade em sítios inesperados, e a horas inabituais. Tal causou este desgoverno dos seus hábitos.
Ao passarem uns pelos outros, foram associando-se em pequenos grupos de gente assustada por sentir uma ameaça nova, e na verdade assustados por sentirem qualquer coisa que seja em tanto tempo. Os grupos cresceram em tamanho, até formarem alguns poucos grupos de centenas de pessoas. Evento estranho de se observar no centro da metrópole. As pessoas sem sorte na vida formando um monte andrajoso e homogéneo de cobertores sujos e casacos rotos, uma mancha que tomou conta da paisagem turística da cidade.
Gerou-se um silêncio aterrador, em parte pela plateia atónita e afectada pelo que via, e em grande parte porque a maioria destas pessoas, por não ter força, vontade, ou por já se ter esquecido de como o fazer, não conseguia falar. Apenas um ou outro mantinha este atributo muito humano da fala, e um acima de todos estava consciente do grande revés que a turba de mendigos sofria com esta secagem das fontes. Quando chegou a polícia, ele foi o único que respondeu.

- Não podem aqui estar - começou o chefe da operação de intervenção, e ordenou - Desanda!

- Qual é o problema de estar aqui - arriscou-se a perguntar do meio da multidão a voz do mais audacioso mendigo. A resposta tardou, por não ter sido prevista aquela reacção

- Não podem, é probido um ajuntamento destes.

- Mas nós simplesmente manifestamos aquilo que é injusto, e na falta de revolta, demonstramos veementemente aquilo que temos de sobra, a apatia.

- Injusto é estarem a perturbar as pessoas. Embora daqui - insistia deste modo o recém promovido tenente, que não queria deixar de demonstrar, pela agressividade, a sua diligência no zelo pela ordem pública. Vendo-se encurralado e vencido neste debate sobre legislação da desordem, o mendigo resolveu abrir o coração.

- O caso é que temos sede.

- E nós com isso?

- Os senhores são a autoridade máxima que rege as pessoas que por aqui andarem, alguma coisa poderão fazer acerca da falta de água.

- Não sabemos porque faltou a água. Além do mais, não é pela vossa classe que os meus homens mantêm o emprego e os salários, pelo contrário, portanto é mesmo aguardar a próxima chuva. Entretanto, é desandar, ou seja, é ir cada qual para o seu poiso de sempre e favor não perturbar o trânsito dos peões e turistas.

Com isto, o melhor alimentado, melhor vestido, e melhor armado chefe de polícia desencorajou o seu rival de prosseguir com a sua reclamação que, convenhamos, era tão legítima quanto desesperada. Acontece que durante esta troca de poucas ideias, um acaso meteorológico extremamente improvável neste pino de verão foi tendo lugar. Sobre a grande praça onde ficaram cercados pelos agentes os cada vez mais desfalecidos e descaídos casacos rotos, foi-se formando um negro aglomerado de carregadas nuvens, que encheu de esperança o mais desatento dos mendigos. Sem se esperar e antes que os dos bastões avançassem a castigar o conjunto de vagabundos, uma tempestade aquífera caiu do céu, primeiro uma chuva forte e constante, que sabia bem à pele suja e quente dos maltrapilhos, e depois uma carga de água incomensurável, tão frequente que se deixou de ver um palmo à frente da vista.
Aquilo que surpreendeu e atemorizou os espectadores deste inédito episódio urbano foi o facto de esta chuva atingir apenas a zona ocupada pelos mendigos. Num círculo bem definido e limitado a essa área, jorrava a água, contrastando com a secura das zonas circundantes, em boa verdade todo o resto da cidade. Aquele mendigo que era mais atreito a raciocínios, o que desafiou a autoridade, pensou para consigo que aquilo só poderia ser intervenção divina. E talvez fosse mesmo uma resolução dos deuses para colmatar esta falta de engenho dos homens. O certo é que, como por artes mágicas, a face dos mendigos fustigados pelo sol ia clareando, as roupas iam tomando as suas cores, próximas das originais, os corpos iam ficando limpos, e as suas almas, parecia-lhes, pesavam menos.
Isto fez o chefe de polícia ficar alerta. O sucesso da sua operação estava comprometido, pois estes mendigos, limpos pela chuva divina, e quase já secos pelo sol que, enquanto entrávamos na encruzilhada mente do agente oficial, já se pôs em toda a praça, podiam agora muito bem confundir-se com o mais comum dos transeuntes. Alterou de imediato a estratégia, não fosse o próprio pós-graduado em situações de assalto, guerrilha e micro-estratégia urbana. Decidiu acalmar os mendigos, falou a todos prometendo, em troca de alguma ordem e respeito, uma distribuição diária de uma refeição e uma garrafa de água. Embalado no próprio discurso, pensando para si que iria facilmente chegar a político, prometeu renovação nas roupagens, e protecção contra o frio desta gente menos abrigada, bem como investimento na reabertura das fontes.
Desta forma, organizou os seus agentes para redistribuírem os mendigos pelos seus lugares de frequentação habitual, e, regressada a normalidade, com a ração diária que se limitou a um pão quando calhava e uma garrafa de água, e com as fontes jorrando a sua usual e usada água, os mendigos tornaram a adormecer pela cidade.
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