quarta-feira, 17 de maio de 2006

Submersão II

Atirou um suspiro, e ficou à espera de ver onde ele ia parar. Não conseguia deixar de repetir os mais ínfimos detalhes dos anúncios das televendas do dia anterior na sua mente, num pensamento paralelo àquele que se estava a entediar de estar atento à realidade em redor. Isto, sempre de cabeça pesada, apoiada pela mão. Já não suportava esta sua responsabilidade no emprego, que era tão importante mas não ajudava ninguém. De facto, tirava prazer de odiar comparar-se com um pisa-papéis, que não tem nenhuma relação com os papéis em si, nem faz parte da informação, mas que se se quebrar e deixar de servir, causaria uma tremenda e caótica desordem. Era um pilar de uma casa que nunca via reconhecida a sua vital função, sendo que o crédito ia parar sempre às quatro paredes e ao tecto. Tirava fotocópias num estabelecimento da especialidade, num sub-andar de um centro comercial.

Para ajudar, o dia estava a passar muito lenta e enfadonhamente. Os dias duplicavam de tamanho quando ela não estava. Através da porta da loja, e com a ginástica treinada dos olhos, mirava ao longe uma parte de um café quiosque do centro, a zona da máquina de café. E ela servia cafés. As alturas imediatamente antes das pessoas voltarem ao emprego eram quando o tempo parava. A fila para as fotocópias aumentava, mas só porque se demorava muito mais a contar as folhas e calcular as contas devidas. Isto porque toda a gente queria café àquela hora. . .Quando retomava a sua resolução de retomar o leme dos seus globos oculares, e satisfazia os pedidos pendentes de forma a deixar de ter pessoas como exigente companhia na loja, olhava para o relógio e tinha passado imenso tempo para quem o julgava parado. Viciou-se, sem tomar disso conhecimento, nesta sensação, enquanto se viciava nos caracóis dos cabelos dela.

Quando saiu do centro comercial no fim da tarde, já levava a preparação costumeira de quem vai sofrer uma carga brutal de décibeis e fumos, de tal ordem é o trânsito na avenida à hora em que sai do emprego. Olhou para o chão, tentando forçar os olhos a habituarem-se rapidamente ao brilho demasiado branco do passeio. E buscava com os olhos as pedras de calçada escuras, que rareformavam figuras no meio das cinzentas pedras brancas, sonhando vagamente com o que lhe faziam lembrar nesse dia. E a calçada portuguesa nas ruas de Lisboa por onde se movimentava era tão imprevisivelmente diversificada, que seria boa ideia os psicólogos tomarem daí exemplos para acrescentar aos seus testes de desenhos de manchas de tinta. Mais provável seria inventarem esses mesmos psicólogos um nome de síndrome para quem sonha partindo de pedras escuras da calçada.

Metro, comboio, autocarro... Quando inventassem mais meios de transporte, seria na certa obrigado a usar esses para além dos que já usa. A aventura diária onde mais emoções por segundo quadrado concentra é a sua ida para casa. Vai cansado, mas não consegue dormir com toda a tensão que requer o esforço titânico que faz por ter uma aparência e um modus operandi normais de um digno e sofisticado jovem cosmopolita. Gostaria de ir sonhando com dias melhores, mas não tira os olhos de toda a gente que vai na carruagem. Gostaria que ninguém reparasse nele, mas fica imensamente frustrado por isso acontecer. Leva consigo, no seu assento, as contradições como se fossem malabares que tivesse de zelar para que se mantivessem no ar. O seu pensamento sobe de volume, e, com ele, também toda a ambiência que o acompanha no tão pouco triunfal regresso a casa. Durante todo o caminho sente-se o mais prófugo dos seres, com toda a sua vida a decorrer, em potencial holográfico, noutro local qualquer do mundo. E é com isso que faz força para sonhar dez minutos antes de adormecer no seu leito. Entretanto, abriu a porta de casa, o corpo perdeu metade das forças, e sentiu que se esqueceu de viver por mais um dia. Prometeu que isso não iria acontecer, e estabeleceu um limite (que o seu inconsciente já conhece de cor, da frente para trás) de dois dias para que não se voltasse a esquecer. Foi acender a televisão para combater o frio que sentiu subitamente.

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