sexta-feira, 12 de maio de 2006

Submersão

Já estava farto dos gestos que executava enquanto maquinalmente lavava o seu corpo pela manhã. Pensou violentamente que não saía daquilo, todos os dias uma mesma coreografia que inventou enquanto pensava na vida, e que põe em prática enquanto não pensa em nada. Ou não quer pensar.
Desta vez, lançou caça a esta dança alheia a si e travou o braço esquerdo, mesmo quando este se preparava para erguer-se no ar, sujeitando o sovaco à aplicação, tão vigorosa quanto displicente, do meio sabonete que habitual e pontualmente por ali passava. Ficou parado e estranhou o barulho da água corrente, apenas tinha dado por ele neste momento. Deixando pender ligeiramente o queixo, apercebeu-se de uns centímetros a mais na barriga, que instintivamente camufla, e como eles permitem apenas a visão de metade dos seus pés.
Estava comiserando isto quando deu conta que a dança rebelde tinha prosseguido sem o seu consentimento, um tanto ou quanto mais apressada que o normal, e estava lavado.
Ao longo do dia, mas não todos os dias, cada vez mais surgiam momentos em que a continuidade do pensamento era interrompida, e substituida por uma outra voz, de dentro, uma voz que ele identificava como sendo ele mesmo, mas estranhamente mais leve. Nessas alturas, não sentia o peso que carrega durante todos os minutos, tal como se bebesse da fonte da juventude, sentia-se incrivelmente ágil, não tinha torpor algum na visão, nem os seus ouvidos doíam. Nestes segundos, talvez tivesse um canal aberto para a sua alma. E nestes breves segundos, atónito, sentia-se sempre completamente triste, incapaz de perceber onde estava, porque estava, para onde ia, incapaz sequer de reconhecer com quem estava.
Subitamente, o ruído invadia novamente os seus ouvidos, como, num mergulho, uma submersão, e novamente deixava de se aperceber deste, estava de volta ao quotidiano. Era uma pessoa normal a tempo inteiro, e vivia sonhando que um daqueles momentos esquisitos voltasse. Forçava, então, a solidão e ansiava que, contemplando, visse alguma coisa em si mesmo. É por isso que nunca queria estar com ninguém.
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