quinta-feira, 26 de outubro de 2006

Escapatória

Por vezes o sentir-se feliz tinha nele um efeito nefasto, por contraste, que o obrigava a viver esses momentos como se vive um sonho em que se pressente que se vai acordar num minuto. São momentos de tortura de sorrisos, dá gargalhadas que lhe ferem o juízo e chega sempre à conclusão que tudo o que tem de bom para dar ao mundo dos outros surge como queijo em ratoeira, um alento que queima todas as suas reservas.

Num dia contava-me, mais ou menos nestas palavras, “Tive uma sensação tão estranha quanto agradável hoje. Vinha no passeio distraído, e olhando para o lado percebi que um senhor bem mais idoso me acompanhava em ritmo de marcha igual ao meu. Continuei passivo, sabendo que estas situações se resolvem por si, mas desta vez continuámos ambos alheios um ao outro mas lado a lado. Sentindo que pisava o mesmo chão que eu e sorvendo o aroma do seu dia que repousava no seu fato, planeei perguntar-lhe algo acerca desta tua cidade, que me é estranha. Mas não me ocorreu nada que quisesse saber, sinceramente até deixei de querer saber por quanto mais tempo aquele homem substituiria a minha sombra.

»De súbito, todo o trânsito parou, deixei de sentir vento ou humidade, e quando olhei em redor com mais atenção apercebi-me de que não estava viv’alma na rua. Reparei num cartaz publicitário a vinte metros de distância e com outros tantos de altura, onde uma gigantesca mulher olhava através de mim com os olhos da marca de roupa que representava, e uns lábios gélidos, mudos e intolerantes. Estava e continuei parado, lembrei-me de dar meia volta e, colado a mim, o homem consultando o seu relógio de pulso, numa impaciência sem expressão. Nem aí encontrei o que fosse para indagar acerca desta estranha cidade, pois esse era já o conceito que tinha dela – estranha. Mas para não deixar que tudo definitivamente parasse fiz um esforço e perguntei, Isto é um sonho?, e ele apenas me fez um olhar mais enrugado, tão velho. Vagamente, senti que devia ficar aturdido, mas sentia-me normal ali. Decidi apenas continuar andando, e senti chuva começar a picar-me. O homem especou lá atrás e apenas o ouvi murmurar, Isto não pode ser, e corri a fugir da chuva que me cortava os movimentos, mas sentindo um ligeiro alívio de não ter aquela restrição de um ser humano constantemente no sítio onde estou. Cheguei à estação e meti-me no comboio. Não sei porque não me surpreendi, mas este funcionava normalmente, sendo eu o único passageiro daquela carruagem, e cheguei aqui à estação para me encontrar contigo muito mais rapidamente do que esperava. Aquele homem . . . Supões que me queria algo?”

E eu tirei o telemóvel do bolso para ligar ao pai deste meu bom amigo. Tinha-se perdido dele novamente.

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