quarta-feira, 11 de outubro de 2006

A praceta

Tinha aquele gosto por ir ler o jornal naquele jardim de praceta, àquela hora dos domingos. Fazia-o como um ritual sagrado e rigoroso: esperava que o relógio cantasse as nove e saía de casa, com o troco exacto para o jornal no bolso das calças. Passava pela banca, com um "bom dia, obrigado" levava o semanário debaixo do braço e ia sentar-se no seu domingueiro banco de jardim. Dava uma mirada às páginas principais e perdia-se pelas crónicas dos seus jornalistas preferidos.
Naquele domingo os eventos sucederam-se da mesma forma, e ela apareceu igualmente, como esperava ele. A mulher passeando um cão à trela, animal de raça Boxer, fazia-se passar defronte do jornal dele e, mais à frente, libertava o cão e ficava deambulando devagar, pensativa. O seu olhar quase sempre apontava o chão.
Ele queria meter conversa (sonhava que o animal fugisse e ele o salvasse heroicamente numa corrida) mas aquela distância que o separava da mulher - de claro cabelo curto, entre o baixa e a meia estatura, como ele pensava - podia ser para ele a extensão da muralha da China ou estes vinte a trinta metros, que se dava o mesmo caso das suas pernas se recusarem firmemente a deslocar-se naquela direcção. As notícias do seu jornal estavam sempre povoadas daquela tão familiar estranha. Associava as notícias do parlamento ao modo como ela estava sentada, e confundia os resultados do futebol se ela parecia algo preocupada nesse dia.
De novo, como em tantos domingos, deitou o jornal no colo e pensou que os seus devaneios não tinham sentido, e que a mulher do cão era a perfeita imagem da sua inconsequência. Dignou-se até a pensar em si como um criminoso, ladrão dos momentos de privacidade alheios. E, como em todos os domingos, decidiu-se a ir falar com a mulher misto de mistério e algo que ele sentia de cor.
Levantou-se colocando o jornal debaixo do braço, fez o jeito de girar os pés no chão - aperfeiçoado após tantas indecisões de último momento - e foi-se a deixar o jardim, domingo acabara, viesse a vida de semana de monotonia solitária.
Antes de deixar a praceta ouviu a voz dela atrás de si.
- Senhor António!
Nunca tinha ouvido esta voz, mas de alguma forma não a confundia com nenhuma outra. Não conhecia muitas vozes, e instintivamente não teve dúvidas acerca da portadora desta. Voltou-se assim esperando ver o que viu, um Boxer arfando, salivando na sua direcção e a mulher, doce, saída de uma fantasia adolescente dizendo:
- Desculpe! Deixou a carteira no assento. Desculpe se lhe vi o nome, estava a carteira aberta e o cartão do banco à vista.
- Não tem problema algum, eu é que lhe agradeço.
António, que assim se chama, disse-o a mulher do jardim, fez um esforço para que o fim da sua frase fosse audível. Tinha nesse momento um raciocínio lento mas bem concreto. Todos os anos que passou pensando que solteiro não era um estilo de vida para si ressoaram-lhe do topo dos seus trinta e quatro anos. E disse, sem esperar dizê-lo, que lhe tinha de pagar um café, "ou algo assim".
- Claro.
- Então... Amanhã dá-lhe jeito, às cinco?
- Sim, com certeza. Estarei na pastelaria Rodolfo.
E o sorriso dela, constante e certo, deixava-o sem poder sorrir ou tomar iniciativas complexas, como se despedir, ou fazer alguma pergunta. Indeciso entre ambas essas hipóteses, e gastando toda a sua energia em tentar exteriorizar simpatia, perguntou:
- Vai levar o cão consigo?
Não soube porque o perguntou, mas ela pareceu saber por ele, deu uma pequena gargalhada que ele achou adorável e disse que "a Mary só come na Rodolfo". Despediu-se até ao dia seguinte, e ele ficou maravilhado com a gargalhada dela, admitiu no seu íntimo que tinha sido ridículo, mas que isso era inevitável. Estava feliz.

Dois domingos depois, jantava António no seu apartamento, sozinho, e começava o noticiário na televisão. Havia mudado a sua fonte de notícias, o jornal e o jardim tinham saído da sua rotina. Mas nesse momento lembrou-se dos cinco minutos que esperou na segunda feira na pastelaria Rodolfo pela desconhecida, a quem se tinha esquecido de perguntar o nome. Tentou perceber por uma última vez se, quando saiu da pastelaria dirigindo-se para casa, tinha ouvido chamar ao longe por Mary. Decidiu que tinha sido ilusão, que uma mulher com uma cadela chamada Mary não era fantasia, mas sim símbolo de um mundo de estranhos que era o seu.
Free Guestbook from Bravenet.com Free Guestbook from Bravenet.com