terça-feira, 5 de setembro de 2006

Homem entre pessoas

Era um homem perfeitamente capaz. Capaz de quê não sei, mas é por capazes que as pessoas tomam aqueles de quem não conhecem a capacidade. Era portanto um homem que aparentava não ser capaz de discorrer uma simples conversação acerca do que quer que se ache normal. Só porque não tinha cara nem pose de quem tem opiniões, não, não me pareceu que tivesse opiniões. Conheço-o como toda a gente o conhece, leva um sorriso perene na boca e nunca se desconcentra, sempre relata. Passa nas ruas cantando, recitando somas e multiplicações como quem está à beira de um teorema, força as letras e inventa os números. Lembra-se do que pensa que devia ter sido a meteorologia transmitida por um posto de rádio num dia remoto, e repete-o ipsis litteris, ad aeternum.
Uma multidão, que é a nossa, ri-se, não pode evitar rir-se, e tem medo de que se pare de ridicularizar o que é, no fim de contas, o medo de toda a gente. Deixam que uma pessoa que esteja só continue só, a partir do momento em que pareça não se importar com o facto. É o agradável, e faz-se de conta que é o útil. Mas não importa, porque uma pessoa não fica mais só. Nem menos. Não existem graus onde não existe nada, não pode estar uma pessoa imensamente só, um pouco só, quase só. . .É só. Apenas pode sentir-se uma pessoa mais só, menos só. . .a solidão, no interior e em essência, é a mesma. Está à espera de ser descoberta, por vezes toda a nossa vida. E é muda, não se manifesta enquanto não esboçamos uma reacção ao encontrá-la; desta maneira, tem um poder infalível.
Eu não acredito que aquele homem seja menos ou mais capaz. Antes parece que só pecou por ainda não se ter encontrado só, não ter concluído que é, ou se sente, irremediavelmente só, terrivelmente longe do que seria uma vida. Não persegue nem se julga perseguido. Não é um inconsciente, passa o tempo em que canta a sorrir. Quem sorri tem conhecimento de que os outros sorriem, riem, cantam, contam anedotas. Quem sabe que os outros ficam felizes, sabe que também pode ser feliz. Uma felicidade embriagada. As pessoas pensam habitualmente que o riso constante é um insulto, ou demência. Não põem a hipótese, não menos certa, de ser sintoma de já se ter visitado ambas essas realidades, porém sentindo na pele o insulto e demência alheios.
Pessoas, há-as optimistas ou pessimistas, há as que forçam o destino, há as que se deixam levar, as que pensam que são boas, as que pensam que são más, as que se chateiam de chatear, as que chateiam de serem chateadas, as ligeiramente masoquistas e as profundamente masoquistas. Muitos destes sentimentos e sensações seguem-se às opiniões e vontades pessoais, a personalidade é algo vicioso. Uma pessoa é aquilo que deseja saber. Mas se assim é, aquele homem não é só um cantor contabilista. É o mar que ondula na calçada, e o vento que não conhecemos porque não faz abanar as copas.
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