domingo, 18 de março de 2007

PPP

O palco a plateia e o público. A história dos três pês. Geralmente existem homens que nascem num tempo em que a luz vigente, por imposição de um sistema de galáxias muito bem organizado, apaga a iluminação absoluta de um futuro promissor. A cena escrita para um palco sempre foi um veículo promissor de fazer girar a grande roda das mentalidades. Quando uma sala fica cheia de um público morto segurado por uma plateia suspensa por aparências e aplausos, o sentido giratório progressista e iluminado da grande roda tem ainda mais vigor. Toda esta maquinaria de cena é sensível, todos os motores trabalham à força das ideologias e esperanças de que o público ganhe vida, tenha pernas e ande sobre o seu próprio pensamento.
As cenas têm duas funções que sendo dissociadas complementam-se estranhamente: a de actuar com o sentido suplantado de fazer as mentes mergulharem numa introspecção necessária e a de ficcionar sob um disfarce essencial cujos motivos ficam enterrados no fundo do nosso pensamento esmagado por uma sala de espectáculos maior que nós mesmos. A pressão é muito grande e estômago dá voltas, imediatamente dá-se uma secura na boca e o medo de que uma “branca” nasça em nós. A “branca” dos seres que lutando em silêncio por uma forma mais ideal os leva a terminar os seus pensamentos numa corda enlaçada que está suspensa no teatro local em que tantas vezes actuaram. Como é que se actua na palavra sem voz? Como é que se anda numa personagem se esta não tem pernas para andar? Como é que se escreve e se encena debaixo de um manto escuro de segundas intenções e olhares fixos na suspeita? Quando os três P se juntam num só temos um progresso postulado, se vivem numa separação, temos então a pantomima da morte do pensamento; e por certo que essa é uma imagem muito forte, não pela ascensão da arte, mas pela morte do “ser” no teatro!

sexta-feira, 16 de março de 2007

Recordações para J.

Segundo me apercebo agora, tive uma infância bastante frágil. Não que fosse desprotegido. Mas as imagens que sobrevêem quando faço um esforço por me recordar dos tempos de criança são apenas mãos, enormes, capazes de me esmagar em dois segundos, mãos estranhas, escavadas. E os adultos para a minha visão de rapaz de poucos anos de idade eram então entidades capazes de apertar o que quisessem de mim até esfolar, quando quisessem. A minha mãe tinha uma pele finíssima nessa região do corpo, mas no entanto eram de uma proporção desmesurada, sempre maiores do que eu. Eventualmente aprendi a viver com elas, a não ter tanto receio de usar óculos por estarem ao alcance de todas as mãos, mas ainda hoje, adulto feito, me surpreendo com o tamanho minúsculo das minhas próprias mãos.
Sempre notei uma correlação muito interessante que talvez passasse despercebida à maioria das gentes: uma gargalhada tinha um efeito nas mãos alheias que nenhuma outra coisa que eu fizesse às pessoas provocava. Quando as pessoas riam, quando se começava a ouvir o som da alegria ou gozo, as suas mãos deixavam de ter a pose ofensiva que ocupavam sempre para a minha vista. Elas mostravam, então, outra disposição, coçavam o rosto, coçavam a barriga, juntavam-se em redor dos narizes. As mãos fundas dos homens desapareciam, nem que por segundos, segurando-se uma na outra por detrás das suas nucas. Os indicadores apontavam. E quando calhava, então, o riso dobrar nas pessoas, esses seus apêndices já dançavam, mostravam sensibilidade, batiam no próprio corpo mostrando uma vulnerabilidade a que eu procurava agarrar-me sempre. Não sei porque vivi obcecado com esse medo de estaladas, mas consigo directamente relacionar isso com a necessidade absurda que ainda hoje tenho de fazer as pessoas rir.

Gira. Era uma palavra que ouvia com bastante frequência, gira, normalmente com o complemento daqui p’ra fora, assim gritavam os manos se eu aparecia. Fui o quarto filho de uma série de quatro, e penso que a nenhum elemento da família restava já paciência para um puto. A minha Nanó, a avó materna, morava connosco e era quem tinha sempre saia para mim. Naturalmente gravitava em seu redor, e já que não me lembro de a ver sem estar ela no seu tricot, as suas mãos nunca apresentaram sequer resquícios de ameaça. A Nanó tinha-me ali ao pé, foi ela quem até me ensinou as cores e o seu efeito nas pessoas, bem como a contar o tempo nas diferentes velocidades de que ele se usa para passar por nós. Perante a Nanó eu nunca tive de me esforçar para parecer ridículo de forma a afastar os seus membros superiores da minha vista. De maneira que, já velhinha, quando viu que me tornara num fazedor de risos profissional, foi a única que estranhou e perguntou o que era exactamente isso. Eu não lhe disse que ia escrevinhando piadas nos rebordos dos jornais, nem que ia aos bares da cidade contar piadas daquelas que maldizem das pessoas famosas. Limitei-me a fitá-la bem fundo nos olhos, estiquei os lábios, e ri com as narinas, ficando alegre e calmo. Sabia que a Nanó correspondia sempre a isto com o seu riso compreensivo, sabia que isto a bem dispunha e a meu favor, e por isso segui esse meu instinto. Só depois retorqui Ora, e a Nanó acredita nisso que lhe dizem?, isso de comediante é o que me chamam lá no emprego por estar sempre bem disposto. Não menti muito.

Certa vez chamaram-me para um dos meus números numa altura bem inconveniente. Disseram que era coisa bem simples, que precisava apenas de aparecer com os meus dentes rebrilhantes e ir abrindo os braços enquanto contava as historietas de que me lembrasse, mesmo se não estivessem na vanguarda das graças - ciência essa com que ciosamente preenchia os meus dias, e que servia de escapatória nas alturas em que não conseguia chorar embora tivesse disso uma forte vontade. Calculo que não podemos ser bons em todas as profissões, e lacrimejar é algo para o que não fui talhado. De facto, que nem me preocupasse era o que eles diziam, onde eu tinha de actuar era no Centro de Reabilitação Social, casa que gozava de um anfiteatro bastante portentoso que já me tinha visto enfrentar fortes plateias, mas porém com a diferença de que desta feita iria actuar mesmo para os que nessa casa esperavam infinitamente uma reabilitação social. Os tolinhos, apelidavam-se assim, gente que conseguia conjugar grandes níveis de alegria e aborrecimento, e apenas isso. Eram as pessoas que, por doença ou atraso, estavam apartadas daquilo que chamamos de real, longe dos suores e correrias diárias na urbe, longe do horário nobre da televisão antes de deitar, longe dos impostos e dos filhos, das notícias de bombas e minas que encarceram para sempre um e outro ser humano, e milhões de outros seguindo esses.
Acedi ao não-desafio, precisava do dinheiro, e imaginei que ninguém quisesse entreter essas almas no dia de aniversário do Centro.
Sou sempre preocupado com o tipo de auditório que vou encontrar. Preparei umas graçolas assentes em lugares-comuns da comédia, as piadas que comecei a contar em adolescente, aquelas que achei que estariam próximas do nível de atenção que me ia ser disponibilizado pelos ouvintes. Entrei sereno no palco sabendo o que me esperava, e vi isso confirmado ao me deparar com umas centenas de indivíduos em poses atípicas, quer por estarem em cadeiras de rodas, quer por terem constantes trejeitos com os braços e pescoços, quer aqueles que me ouviam com o olhar fixo na cadeira defronte deles. Acompanhantes, apenas alguns, e enfermeiros na distância. Saudei a plateia, apresentei-me, e sem esperar segui o meu caminho, fiz referência ao calor que fazia lá fora e que me teria impedido de dar com a casa, quando dera por mim estava no Jardim Zoológico a pentear macacos, a contar piadas a lontras, tudo isto mentiras engraçadas que lhes contava, quando a verdade é que estava no palco imitando leões e golfinhos a tentar arrancar a primeira risada geral, o ópio do meu ofício.
Não saltava essa gargalhada total, alguém ia rindo à minha confissão de ser um zero no futebol, outros sons iam sendo emitidos de boa disposição, sempre bem dispostos, reparei que todos riam, à sua maneira. Demasiado, até. Uns apontavam para mim, riam com a saliva toda que tinham na boca, exclamavam vocábulos só deles, riam, riam, às vezes de mim, nas outras comigo. Perdi o norte, respirei fundo e pela primeira vez desejei conseguir por momentos serenar uma grupo alegre de pessoas. Insultava os patetas com os meus botões, resisti para não disparatar com piadas agressivas. Até que me inebriei de vez, junto com eles. Percebi. O que senti naquela altura não é um estado de espírito bem nítido, mas compreendi que não interessava tanto o que eu dizia, ou de quem falava. Aquelas pessoas estavam comigo, estavam rindo, e pela primeira vez não era de eu me assumir ridículo, ou dizer isso de outrém. O riso, para eles, era uma própria linguagem com que controlavam o fluxo de emoções que transmitiam para o exterior. E quando me imiscuí nessa linguagem, mais simples e sincera que as anedotas, senti-me pela primeira vez num grupo onde todos tinham as mãos do tamanho das minhas.

quinta-feira, 8 de março de 2007

Ginecartografia

Para mim és hoje uma rua de Lisboa. Não uma que já havia, mas uma que passou a haver, começou a ser construída no dia em que te conheci. E não foi necessário quase tempo nenhum para começar a odiar-te de todo o meu coração, foi muito fácil. Nem compreendia quem teu amigo fosse, a não ser, evidentemente, por interesse próprio, já que a amizade tem limites, e eu traçava-os no desperdício desconfortável que era aturar-te, a ti, que lançavas no ar uma espécie de pólen grudante com o teu nome inscrito quando te movias, cativavas multidões sorrindo; que falavas muito de mim mas nunca para mim.

Na altura, Lisboa era um turbilhão cheio de tudo, e nós éramos velejadores insanos por gosto. Nem julgo que tivesse algo que se pudesse designar por consciência – vivia mais ou menos acompanhado por umas palavras de monótono remorso e confusão repetidas na minha cabeça que afastava constantemente, substituindo por nomes de mulheres e verbos frenéticos e sujos, e nomes de mais algumas mulheres e novos verbos fantásticos. Tu eras uma mulher, mas nunca te ficaste por um nome, eras a teimosia em puro estado líquido, a inconveniência personificada. Lindo serviço, ironizavas tu de cabeça no ar quando me apanhavas de óculos escuros às onze da manhã de um dia em que mais deveria ter acordado pela hora do jantar. Já sabia odiar-te de cor, assim que sentia esse aroma balsâmico que espalhavas entrar nas minhas redondezas, e tornavas diariamente essa tarefa muito fácil. Como naqueles dias em tua casa, com a tua mãe a servir chá e bolos, com o teu pai a ler o jornal em frente à televisão dos mil decibéis, e eu lá, com a desculpa do estudo, raios partissem o estudo ao meio, cada pergunta que me fazias era porque sabias que eu não sabia, cada piada que eu dizia tinha de ser explicada. Tanto estudo, eu acho que ainda ia lá para tentar estudar-te, continuei indo numa tentativa de compreender como conseguias irritar-me tanto.

Tentei ainda desistir de ti, passei a falar-te só de colegas muito femininas e jogos de futebol, mas conseguias sempre que eu caísse e desaparecesse nos teus jogos marciais. Desde sempre me embalaste nos teus menosprezares, deitavas redes de insinuações para descanso meu. Tentei desistir de ti e de tudo isso, mas detestava-te demasiado.

Nos parques desta cidade aprendi a ler nos teus olhos. Tudo o que lia atormentava-me, maldisse tantas vezes saber essa língua. Castanhos escuros, pareciam cada dia ter um novo tom de negro. E tu não só sabias que eu te sabia ler, como sabias fazer-me ler o que querias, sempre. Que torturas podias tu, mulher de vários nomes, inflingir ininterruptamente? Dizias a todos o que eu era, preto no branco, logo eu, que nunca tinha sido nada, e queria continuar assim. Reinventavas a minha miséria esculpindo-me os olhos, lábios, orelhas, nuca, com as mãos. Odiava-te, e desde que me esculpiste passei a odiar-te como se odeia a um criador de quem se conhece todos os cheiros e jeitos.

Se algum vez te feri, foi de propósito, e de certeza que não foi facilmente. Não porque tivesses um espírito tão titânico assim, mas porque me conhecias, melhor do que eu próprio. Quando estudei no estrangeiro fui decidido a conseguir desistir de ti, deixar diluir esse ódio na distância.




Quantos dias passaram até me telefonarem de Portugal? Dois? Quinze? Acidente, fulano não conseguiu travar a tempo. Falha mecânica. Está-se a investigar, tem calma. Dou em doido se não me disserem a verdade.



Quando voltei, Lisboa não tinha ruas, o caminho do aeroporto a tua casa foi um vácuo. Cheirava lá a flores de vasos, ainda hoje cheira, nunca mais lá tornei. Odeio que tenhas morrido, do fundo de mim, do que eu sou, daquilo que me mostraste que eu podia ser. Odeio a imagem da tua casa vazia na minha mente – para mim és hoje uma rua de Lisboa, luminosa e de passeios muito largos, onde a cidade começa e acaba - odeio que a tua lápide exista, odeio ver lá palavras que eu escrevi antes de conseguir ter coragem de tas dizer. Tenho saudades tuas.

segunda-feira, 5 de março de 2007

Espelho escuro

A noite sempre inspirou. Pelas estrelas.

Talvez imensas estrelas façam

o universo parecer infinito,

de cores, e amores,

pessoas, rubores que passam

a bordo de um só grito.


(Na minha cidade, estrelas

Nem vê-las.)

A noite instiga. Pelo escuro.

A noite chama noite adentro

Uma vez, frente a um espelho

Sorri, era noite,

Um sorriso grandioso

De tão triste e de tão velho.


(Mas sempre que os lábios sobem

Sou jovem.)

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