sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Vida rasteira (parte II)

Sempre que despertava, Josué Boné via a vida rasante ao chão. Estava habituado a apreciar as beatas, os papéis-guardanapos desperdiçados, as latas, o rebuliço das pernas das pessoas sempre se apressando, obliquamente notava todo este mundo rasteiro, acordava virado para o chão.
Porém, das vezes seguintes em que se preparava para encarar e deuxar passar novo dia, além de uma imensidão de calçada suja e povoada de pés de pessoas, reparou que estava sempre acompanhado pela criatura dócil, calma, o cachorro que de dia para dia crescia nem ele sabia como, se nem para ele próprio arranjava o suficiente que comer, como estaria aquele cão, de pelo negro, fosco, cão de rua, com um aspecto tão saudável? O certo é que velozmente o cão ia atingindo um bom tamanho, e o seu poiso predilecto, onde estava constantemente deitado, era ao lado do boné do Boné. Tanto assim era que Boné já quase não ia ao boné retirar a grande parte que houvesse da sua conta - que não era bancária porque não estava num banco, mas sim no chão - para evitar os furtos, frutos das suas constantes escapadas da realidade deste mundo. Cada um destes, agora dois, mendigos permanecia no seu posto, e tinham-se respeito tal que o bicho não encarava Boné nos olhos quando se sabia observado, passando-se o mesmo na ordem inversa de ideias. E neste mutualismo surgido aparentemente por acaso, tudo se passava pacificamente, tão passivamente quanto antes, com apenas uma diferença de que Josué se aoercebeu a certa altura olhando o seu boné.
A sua conta em moedas crescia, amontoava, quase criava juros, ao ponto de até moedas mais cintilantes e valiosas se notarem no meio de um monte de outras mais modestas. O coração do sem-abrigo palpitou, pulsou forte algumas vezes. Já se ia esquecendo de comer há muitas horas, mas lembrava-se que padecia de séria fome. E ali lhe surgiu uma mina, um almoço como há muito não havia. Acorreu ao dinheiro, e de imediato o cão se ergueu num pulo, ficando no entanto espectante, olhando ora aqui ora ali, como que atento e de guarda. As pessoas que passavam pensavam que aquela pobre alma tinha finalmente arranjado, pelo menos, uma companhia, um cão. Boné ia pensando: "Este cão fez-se meu dono e mestre."
E assim parecia ser: o cão nada lhe pedia mas depressa o começou a ensinar. Refilava se alguém se aproximava de modo suspeito do boné, rosnando ameaçadoramente. Aparecia simpátivo ao resto das pessoas. Começou a ladrar, para grande espanto inicial de Boné, quando notava que já habia suficiente no boné para que se fosse comprar comido. Por vezes, desaparecia para aparecer daí a momentos com uma moeda que, com o ar mais natural deste mundo, depositava no boné, lambia o focinho duas ou três vezes e tornava a deitar-se. Mais que tudo, este cão que sabia contar e farejar dinheiro, deu umas novas pernas ao seu dono adoptado, ensinou o humano a erguer-se nelas, e este já passava mais tempo acordado e vertical, e já se afastava vários metros do boné por largos minutos, até dando-se ao luxo de comprar o pão em sítios diferentes de cada vez. O cão permanecia nessas alturas junto ao boné, mendigando aos humanos. E, de tudo o que caía no boné, recebia metade, em alimento.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Vida rasteira (parte I)

Defronte da igreja, na rua atarefada, morava Josué. Por muitos anos não fazia assento noutro lado que não aquele, o Josué, e a sua ligação ao resto do mundo era um boné que equilibrava no chão virado para cima, lugar para qualquer amostra de esmola que lhe quisessem facilitar. Por conseguinte, por lógica e por comodidade, Josué era chamado pelos que o estavam habituados a conhecer por ali de Josué, o do boné, ou mais usualmente apenas por Boné. Andrajoso, maltrapilho como os que nada têm nesta vida, o Boné fiava-se mais no alheamento deste mundo do que na sorte da esmola, e gostava de adormecer sonhando-se noutras cidades, que imaginava belas porque belos lhe soavam seus nomes, mesmo ciente de que essa sorna lhe valia na maioria das vezes o desaparecimento das moedas que tivesse à vista no seu boné companheiro, sempre moedas pouco cintilantes, o que era forma pouco cintilante de ganhar a vida mais rápido que a vida de uma gafulha se tornava em forma de perdê-la. O boné, esse, nunca o levaram. Sabiam talvez que mais oportunidades surgiriam brevemente de furto, e assim sendo não queriam dificultar a vida ao Boné; eram quase os seus melhores amigos, estes fiéis larápios, tendo em conta que de amigos pouco tinha nesta vida, quem sabe se nenhum mesmo.
Um dia houve em que, abrindo os olhos, Josué do boné avistou abeirando-se do seu ganha-pão um animalzinho muito pequeno, um jovem cão farejando o conteúdo do chapéu. Normalmente, e já que esta não era grande ameaça ao mealheiro do mendigo, teria ficado indiferente. Mas, movido por uma súbita curiosidade, foi ter com o bicho, sacudiu a barba farta com as costas das mãos, aguardou uns momentos olhando o bicho do alto e finalmente agarrou-o. Subiu uns degraus da igreja, e depositou-o junto à porta achando que alguém lhe iria achar piada e levar. Isto sabia ele do mundo, o pequeno cão, apesar de abandonado, era amoroso, o que a juntar ao pouco tamanho suscitava na alma humana comiseração imediata. Já ele, começando na barba, terminando nos pés pouco calçados, nada tinha de pequeno ou amoroso, e essa era quase sempre a diferença entre vinte cêntimos e nada.
Perdido nestas conjecturas de desiludido da vida, Boné perdeu o espetáculo de esforço aparatoso do cachorro que, o mais rápido que pôde, sôfrego tornou para junto do boné. Lá se deitou. Boné encolheu os ombros, coçou a nuca, e tomou também o seu posto, deitado de lado perto do boné, e da nova presença que rapidamente esqueceu que era estranha. Isto porque rapidamente adormeceu.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Como é por vezes

Amamos todos a vida
Até quem com desalento a odeia
É capaz do maior vigor.

Abrindo ou fechando os olhos,
Seja cinzenta ou clara,
Todos nós amamos a cor.

Duas faces da mesma verdade,
Alternadamente, com ironia,
Apraz-nos o alívio, e a dor.

Adoramos falar do que amamos
Ainda que isso seja um pequeno verso,
Um nada, o frio, o feio, o calor.

Amamos as outras pessoas
Quando nos apetece.
É o amor.
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