sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Pestanas à parte

- Está aqui uma pestana! Como é que veio parar aqui uma pestana?
- Onde, na sopa?
- Ainda se fosse um cabelo, mas agora uma pestana?
- Mas, na sopa?
- É muito pequena, mal se vê. Nem sei como é que consegui ver uma pestana aqui no meio…
- No meio do quê? Da sopa?
- Se estivesse distraída a falar contigo nem conseguia ver a pestana…
- Bolas, deixa lá a pestana!
- Deixa não! Podia tê-la engolido.
- À sopa? Por acaso está boa, não está?
- Não, podia ter engolido a pestana. Mas a sopa está óptima.
- Queres dizer que nunca mais cá voltamos?
- Voltamos sim, quando isto mudar de gerência.
- Por favor, não sejas tão radical, foi só uma pestana. A pestana pode ser tua!
- Minha? Francamente, isso é impossível, estou a usar rímel.
- E consegues distinguir no meio da sopa se a pestana tinha rímel ou não?
- Eu sei que não era minha, pronto!
- Ok, não se fala mais nisso. Só há uma dúvida que tenho?
- Diz.
- Não sei porque é que metes rímel se usas óculos.
- Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
- Pois eu também acho isso.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Caminho nos sentidos

Acorda-se nesta vontade severa,
O frio aperta sobre a pele nua
A silhueta aparece no espelho.
Sentir-te a respiração, imaginar-te!
Caminhamos nus sobre a neve,
Carregamos o sexo nas mãos...
O ar quente que sai da boca torna-nos visíveis.
Rumamos para o impossível desejo de fundirmos as almas
Não podemos pensar, o corpo não quer parar, deixemos a expressão surgir.

Uma subtil melodia surge entre a tensão dos dedos
Agarra-se o sonho e penetra-se a nuca oscilante,
O mar num estrondo constante acende as velas do enigma.
O desconhecido, o terno desconhecido que mexe com os sentidos.

Pode-se, numa explosão de verdade fazer acontecer o que se quer.
Sair, entrar, deixar o sangue ferver e as lágrimas escorrerem pelas pernas mudas
Abrir-se o peito, e com uma voz rasgada as palavras caírem pelos seios expostos
E ficar, permanecer assim, visível, carne exposta às intempéries…
É preciso sarar do fundo até à superfície, saborearmo-nos para gostarmos de nós!

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Imagens no escuro

É este quotidiano de lugares mexidos, usados, consumidos, mas que no entanto estão sempre cheios, plenos, vivos por estarem lá, daquela maneira. Os objectos não me pertencem, mas eu poderia tê-los usado. Talvez já os tenha usado, não exactamente aqueles, mas a essência daqueles, exactamente aquela que me toca na repetição sobre o lugar comum. Quando olho para as imagens, elas passam a pertencer-me, são minhas as visões e os objectos transformam-se. De quem são aquelas roupas? E se caminharmos pelas divisões coroados como reis dos espaços que apenas pertencem a si mesmos e ao tempo? A luz recai sobre um objecto, amplifica-o, torna-o importante aos nossos olhos. Estamos expostos ao acto mecânico de quem não sabe o que faz porque apenas explora sobre a sombra aos olhos de quem tenta dar um significado.
Os carros passam sobre as ruas cheias de intenções e passos vazios. O candeeiro mantém-se suspenso à chuva e sob o orvalho da manhã.

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quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Baratas

Aparecem sobre a superfície na escuridão da noite, no silêncio enquanto as pessoas respiram profundamente. Mexem-se velozmente, freneticamente sobre os tubos metálicos e vibrantes que constituem a grande rede de ensaio do subsolo. Uma vida vibrante, curiosa e repelente existe por trás das belas fachadas coloridas dos prédios. Elas suportam-nos quando pisamos o chão, elas resistem quando as estonteamos de veneno, quando destilamos a nossa agrura num gesto rápido e esmagador. São baratas as convicções mas caras as aplicações, é barata a vontade de destilar e terminar com o que nos é incómodo. Elas subsistem, persistem e insistem em existir para nos dizer que por debaixo da opulência existe a natureza frágil que insiste em romper pelos bonitos soalhos bordados a linho e faia.
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