quarta-feira, 30 de maio de 2007

Cúmplice adeus

Escuta-se ruído, muito ruído. Pneus de camiões furiosos empurram a água da estrada, uma buzina de automóvel ralha, solitária, à distância. Asas de pássaros, um, dois, três pássaros batem de surpresa, fogem, estacam. Centenas de pernas fogem e estacam, fogem e estacam, não param; mil aspersores incidem zangados uns com os outros, o nevoeiro é barulho que se ouve com o nariz.
De súbito, tudo cessa, tudo se aquieta. O ouvido estranha, mas continua o caminho na calçada, o peito pesa. Um aperto tamanho no peito
-Respira
A pressa fugiu, o mundo perdeu a geografia, a geometria, é obsoleto cronometrar a vida. Não se ouve nada, e continua pela calçada caminhando em frente, não se distinguem os detalhes. Mas tudo está estranhamente tranquilo, tudo se pinta de sossego e uma alegria ténue. Tudo se suspende num momento de vácuo enquanto ele caminha.
Parece que o estou a ver a ir embora, leve, pela calçada.

sábado, 19 de maio de 2007

Vertigens

Nem sei porque escrevo. É tudo o que tenho feito desde uns tempos para cá, não tão poucos quanto isso… os suficiente para que me questione sobre o que estou a fazer carregando freneticamente nas teclas do computador e vendo o cursor a avançar sobre o surgimento das letras. São apenas letras, palavras, penso não lhes querer conferir algum sentido próprio ou que o texto tenha no fim um seguimento lógico.
Tudo parece ser uma vertigem para o mundo da ficção, as longas voltas que a cabeça dá e os ruídos constantes que adormecem os sentidos e os mergulham numa viagem alucinante. Este sol que abrasa a cútis e dilata o que é divino causa uma inquietação na mente que precisa de descarregar energia no mar e deitar fora tudo o que são lágrimas presas às pressas dos dias.
A dormência é absoluta, incrível como todos os dias as mãos tentam acordar o corpo e não conseguem, nem mesmo beliscando-o… sei que está fora de si, racionalmente tento lembrar-lhe que está fora mas a viagem passa-se a um nível mais profundo.
Até quando é os pensamentos vão dar voltas nos lençóis húmidos pelo suor da vontade de cair sobre o não lembrar? Quando é que me sentirei perdida por achar que não dominei um dia os meus sonhos? A memória está cansada mas não se cansa de lembrar-me que existe… caberá algum dia tudo o que vive alucinantemente?
É o sol e o mar que vão deixar que o corpo abandone esta energia de mendigo esfarripada, parecem rasgos a saírem-me por entre as mãos melodiosamente em direcção a um outro lado conectado. Assim que o descobrir, desligo a ficha e deito fora o acumulador.

sexta-feira, 4 de maio de 2007

"Hoje matar-te-ei" *

Matar deve ser, mais coisa menos coisa, como morrer. No final de contas, perde-se uma vida, de quem pouco importa, eu acho. Quem mata padece do desejo de dizer um adeus permanente. Quem morre, permanentemente se está despedindo. E eu aqui pensando-nos numa daquelas arenas romanas, cada um tentando ferir o outro com o olhar até que um de nós caísse por terra. Eu brandindo um gládio feito de raiva contida, agitando-o até quebrar tudo em meu redor, até, violentamente, desapareceres da minha ideia. Ainda ontem te amei...

Fiz o quê?

Tive-te a jeito, rodei-te a cintura, encostei-te e prendi-te as costas no meu peito, apreciei a fragilidade do teu pescoço, e apreciei que o teu pescoço fosse frágil.

Ontem mesmo te amei como te tenho vindo a amar, faço como se fosses o mundo inteiro e atiro-me, feito em napalm. De noite tu dormes. . .eu choro, à velocidade de renovação das lágrimas.

O que importa aqui é que um de nós morra, à revelia da minha covardia, é este o princípio do nosso eterno renascimento. Quero propôr-to, descaradamente, quero contar-te esta minha lucidez, em vez de deixar uma tímida mensagem no teu gravador – "Hoje matar-te-ei". Prepara-te, porque levarei esta minha loucura até à última instância. Entrego-lhe o meu destino, entrego-lhe o teu.

É assim o jogo dos insanos. Perdoa este aviso de quem te ama.



* Resposta ao desafio do Finúrias

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