quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Parafernália comercial

Entramos num lugar VIP e estamos mais perto da realidade do que imaginamos. Se por acaso esse lugar se encontrar fora de serviço pedimos desculpa pelo incómodo, pois apenas temos um certificado de conformidade que se refere às normas de segurança contra riscos de incêndios em estabelecimentos comerciais. Contudo, temos uma frota de caminhos para emprestar, qualquer que seja o destino, consulte-nos.
O senhor está pronto para o melhor tempo da sua vida? Entre no cinema, nas salas 1,2 e 3, faça fila única, deposite os seus cheques e notas e ganhe um saco de esperança.
O bom deste lugar é que enquanto você entra na loja amarela, prova uns chocolates, cai nas mais diversas tentações como comprar a nova fragrância masculina, um americano entre seis funcionários é assassinado em Cabul. Tenha em mente que nós fazemos com paixão o que você faz por amor. Por isso, sente-se no seu sofá, beba o seu leite reforçado com cálcio que ajuda a prevenir a osteoporose enquanto assiste pela janela a uma chuva de folhas em pleno Outono sobre esta terra pura. Ah, como é bom estar aqui!

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domingo, 25 de outubro de 2009

Quase-revolução

Uma manhã, como qualquer outra enevoada manhã naquela cidade, deu-se o súbito fenómeno de todas as fontes, repuxos, aspersores e demais orifícios de onde provinha água, suspenderem a sua obra, o mesmo que dizer que aparentemente secaram. Sendo verão, mais que em qualquer outra época do ano, é junto a um destes oásis o sítio que, a esta altura da aurora citadina, os mendigos desta cidade escolhem para frequentar, refrescar, lavar aquelas partes do corpo que conseguem lavar publicamente, e saciar a sede e a fome em simultâneo, na falta de algo mais sólido para entreter os interiores.
Dada a recente secura, todas estas almas habituadas à falta de fortuna despertaram perplexas, não estavam habituadas à ideia de que podiam vir a sentir que estavam privadas de alguma coisa que tinham garantida, simplesmente porque não achavam que tinham nada garantidamente.
Este episódio nunca dantes visto numa cidade destas dimensões deu origem a uma espécie de diáspora, um sair dos seus nichos habituais por parte dos vagabundos urbanos, que começaram nos dias seguintes a ser vistos vaguear na cidade em sítios inesperados, e a horas inabituais. Tal causou este desgoverno dos seus hábitos.
Ao passarem uns pelos outros, foram associando-se em pequenos grupos de gente assustada por sentir uma ameaça nova, e na verdade assustados por sentirem qualquer coisa que seja em tanto tempo. Os grupos cresceram em tamanho, até formarem alguns poucos grupos de centenas de pessoas. Evento estranho de se observar no centro da metrópole. As pessoas sem sorte na vida formando um monte andrajoso e homogéneo de cobertores sujos e casacos rotos, uma mancha que tomou conta da paisagem turística da cidade.
Gerou-se um silêncio aterrador, em parte pela plateia atónita e afectada pelo que via, e em grande parte porque a maioria destas pessoas, por não ter força, vontade, ou por já se ter esquecido de como o fazer, não conseguia falar. Apenas um ou outro mantinha este atributo muito humano da fala, e um acima de todos estava consciente do grande revés que a turba de mendigos sofria com esta secagem das fontes. Quando chegou a polícia, ele foi o único que respondeu.

- Não podem aqui estar - começou o chefe da operação de intervenção, e ordenou - Desanda!

- Qual é o problema de estar aqui - arriscou-se a perguntar do meio da multidão a voz do mais audacioso mendigo. A resposta tardou, por não ter sido prevista aquela reacção

- Não podem, é probido um ajuntamento destes.

- Mas nós simplesmente manifestamos aquilo que é injusto, e na falta de revolta, demonstramos veementemente aquilo que temos de sobra, a apatia.

- Injusto é estarem a perturbar as pessoas. Embora daqui - insistia deste modo o recém promovido tenente, que não queria deixar de demonstrar, pela agressividade, a sua diligência no zelo pela ordem pública. Vendo-se encurralado e vencido neste debate sobre legislação da desordem, o mendigo resolveu abrir o coração.

- O caso é que temos sede.

- E nós com isso?

- Os senhores são a autoridade máxima que rege as pessoas que por aqui andarem, alguma coisa poderão fazer acerca da falta de água.

- Não sabemos porque faltou a água. Além do mais, não é pela vossa classe que os meus homens mantêm o emprego e os salários, pelo contrário, portanto é mesmo aguardar a próxima chuva. Entretanto, é desandar, ou seja, é ir cada qual para o seu poiso de sempre e favor não perturbar o trânsito dos peões e turistas.

Com isto, o melhor alimentado, melhor vestido, e melhor armado chefe de polícia desencorajou o seu rival de prosseguir com a sua reclamação que, convenhamos, era tão legítima quanto desesperada. Acontece que durante esta troca de poucas ideias, um acaso meteorológico extremamente improvável neste pino de verão foi tendo lugar. Sobre a grande praça onde ficaram cercados pelos agentes os cada vez mais desfalecidos e descaídos casacos rotos, foi-se formando um negro aglomerado de carregadas nuvens, que encheu de esperança o mais desatento dos mendigos. Sem se esperar e antes que os dos bastões avançassem a castigar o conjunto de vagabundos, uma tempestade aquífera caiu do céu, primeiro uma chuva forte e constante, que sabia bem à pele suja e quente dos maltrapilhos, e depois uma carga de água incomensurável, tão frequente que se deixou de ver um palmo à frente da vista.
Aquilo que surpreendeu e atemorizou os espectadores deste inédito episódio urbano foi o facto de esta chuva atingir apenas a zona ocupada pelos mendigos. Num círculo bem definido e limitado a essa área, jorrava a água, contrastando com a secura das zonas circundantes, em boa verdade todo o resto da cidade. Aquele mendigo que era mais atreito a raciocínios, o que desafiou a autoridade, pensou para consigo que aquilo só poderia ser intervenção divina. E talvez fosse mesmo uma resolução dos deuses para colmatar esta falta de engenho dos homens. O certo é que, como por artes mágicas, a face dos mendigos fustigados pelo sol ia clareando, as roupas iam tomando as suas cores, próximas das originais, os corpos iam ficando limpos, e as suas almas, parecia-lhes, pesavam menos.
Isto fez o chefe de polícia ficar alerta. O sucesso da sua operação estava comprometido, pois estes mendigos, limpos pela chuva divina, e quase já secos pelo sol que, enquanto entrávamos na encruzilhada mente do agente oficial, já se pôs em toda a praça, podiam agora muito bem confundir-se com o mais comum dos transeuntes. Alterou de imediato a estratégia, não fosse o próprio pós-graduado em situações de assalto, guerrilha e micro-estratégia urbana. Decidiu acalmar os mendigos, falou a todos prometendo, em troca de alguma ordem e respeito, uma distribuição diária de uma refeição e uma garrafa de água. Embalado no próprio discurso, pensando para si que iria facilmente chegar a político, prometeu renovação nas roupagens, e protecção contra o frio desta gente menos abrigada, bem como investimento na reabertura das fontes.
Desta forma, organizou os seus agentes para redistribuírem os mendigos pelos seus lugares de frequentação habitual, e, regressada a normalidade, com a ração diária que se limitou a um pão quando calhava e uma garrafa de água, e com as fontes jorrando a sua usual e usada água, os mendigos tornaram a adormecer pela cidade.

Debaixo da minha janela (inspirado em)

Não sei definir uma janela. Não é certamente uma passagem, mas também é insuficiente dizer dela que é um conjunto de vidros e outros materiais estruturantes.

Parece-me que inventaram a janela à pressa para camuflar o facto de precisarmos de paredes.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

“Por baixo da minha janela.” (1)

Um parapeito que sugere uma infinidade de possibilidades, uma janela em aberto. Afinal, tudo pode acontecer por baixo da minha janela. Talvez apenas eu nunca tenha estado atenta ao que se passa por baixo da minha janela. Na realidade por baixo da minha janela é o meu pátio, existem janelas que não dão para o exterior. No entanto existem janelas que dão para o interior, se juntarmos ambas as possibilidades são ilimitadas. Por vezes gosto de estar debruçada na minha janela e ver as gentes que passam e ouvir o que dizem, se não consigo, imagino! Outras vezes recolho-me e fico do lado de dentro da janela, não quero que me vejam, mas eu posso ver todos. Nem sempre posso estar à janela, tenho outras coisas para fazer, mas ponho-me a imaginar como seria se conseguisse estar 24h à janela, a olhar para baixo. Sentir-me-ia uma entidade maior, que poderia ver tudo, ou uma doente que sofria de um voyeurismo exacerbado, ou até sentir-me-ia cansada e infeliz porque não tinha mais nenhum objectivo a não ser o de estar à janela para ver o que se passava por baixo dela.
Mas agora imaginar estar à minha janela e realmente não estar é muito mais interessante, posso eu criar as personagens, as situações, dar os finais e ainda pintar as cenas com cocó de pombos como pontos finais.
Gosto de ouvir num dia de inverno a chuva a bater na minha janela, o pior é que me impede de ver o que se passa por baixo dela. Não gosto de ter os vidros das janelas sujos, mesmo que estas não dêem para a rua, as janelas interiores também se sujam se não forem limpas com alguma frequência. A mim ensinaram-me que a melhor maneira de manter os vidros das janelas sempre limpos e sem pêlos é limpá-los com papel de jornal e limpa vidros. Um dia o meu senhorio disse que se haveria de tirar as janelas de madeira e trocar por outras de alumínio, eu não permito, acho que as janelas de madeira dão um ar muito mais bonito.(2)

(1) A frase do título foi escrita por Jorge Silva Melo
(2) O comentário é meu :)

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Um texto para cada divisão

Sala 1

Existem portas que escondem as divisões de cada um. Abrem-se e vê-se tudo repartido, vazio e cheio de pó.

Sala 2

Ao lado da janela que dá para o pátio existem cabides que seguram malas. Essas malas pertencem a alguém que passou por esse corredor escuro e frio, onde os 10 botões que lá existem não se sabe o que fazem.

Sala 3

Sem janela e sem extractor de cheiros deve-se manter o local limpo. Existem detergentes, balde, esfregona, luvas, panos, caixote do lixo, sabonete para as mãos, mas não existe papel higiénico.

Sala 4

Pela porta azul em ferro trabalhado impera um painel de azulejos num espaço espectral. O esqueleto do espaço está bem desenhado, basta saber interpretá-lo; as saídas de emergência estão bem sinalizadas, contudo existe humidade nas paredes e a tinta descasca ante nós.

Sala 5

Esteve ali alguém agora mesmo, o avental ainda mexe. Será que os ténis foram colocados ali de propósito? É que alguém pode roubar. Ainda bem que existem grades nas portas trancadas se não por este chão de calçada portuguesa muitos delitos se davam.

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quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Naquilo que resta

Farrapo. É como um farrapo humano que me vêm. Sou, na verdade, mais farrapo que humano, e por isso dependo tanto assim da humanidade. Procuro a humanidade até à demência, procuro onde a cheiro, vasculho onde oiço os seus ecos, analiso no lixo cada pedaço de humano.

E no lixo - onde me vêem vaguear, onde gasto tanto da minha tão parca atenção – é lá que encontro o que há de bom e mau nos homens. Deparo-me com os seus restos, é nos seus restos que concentro as minhas forças. E sem eles, sem o que as pessoas desprezam, não estaria aqui, com o meu juízo inteiro. Eles preenchem-me com sensações dos homens, fazem-me sentir perto, e daí eu me achar dependente do desperdício das gentes. Necessito que as pessoas desperdicem, se desapeguem daquilo que amaram, ou daquilo que necessitaram. É preciso que gastem, se enfadem do que têm, desperdicem o que não conseguem consumir, tenham menos e mais fraca barriga do que olhos gananciosos. Preciso do seu luxo antigo e despedaçado. Preciso que sejam egoístas, que usem só o que têm de melhor para me restar algo daquilo que é paupérrimo.

Sejam egoístas, e sejam insanamente autocentrados, preocupem-se tanto como só vocês conseguem com a vossa imagem pública, ao ponto de me darem uma esmola que pareça bem aos olhos dos que passam a ver. (por favor) Desunam-se e digladiam-se, e atirem-me as sobras. Sintam o fervor da inveja, e sintam também o frio que resta no fim dela. É também importante que sintam frio, muito frio. Tanto, que invistam todo o aquecimento nas vossas máquinas, nas vossas construções recordistas e ambiciosas, e assim eu sentir-me-ei protegido, terei o meu lugar próximo desta humanidade fumegante das cidades, serei parte integrante do seu conforto, muito embora esteja na ponta final do mesmo: uma cinza, uma marca do aconchego que existiu nalgum lugar que não este.

E ainda assim, onde eu moro é onde existe mais humanidade. Nas ruas deste mundo, sente-se uma névoa gélida pela manhã. Ela vem carregada com tudo o que fervilhou nas mentes dos homens, que agora dormem exaustos, distantes. Nela, eu sou invisível.
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