segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006

Clarice e o Barro, Eu e Clarice!

Olhei para a embalagem e li-a, abri-a com os dentes e cheirei o barro, tacteei-o e saboreei-o com as minhas mãos. Adoro terra, adoro cor, adoro sentir-me suja com o barro, com algo que tinja, que solidifique e fique mais agreste.
Pousei o barro na ideia de fazer um busto de uma mulher, talvez eu-personagem, talvez a Clarice! Mas o barro pousou de uma forma em que eu, de modo atento, vi alguém sem sexo, arqueado, prostrado no chão num tom de desistência e cansaço. Concentrada eu moldava para que se torna-se o mais real possível, dava-me uma calma muito grande nas palavras que referia.
Decidi deixar a minha identidade, ou melhor, uma pluri-identidade, uma que coubesse em todos ou que todos coubessem nela.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

Vida ortográfica

Uma página branca e independente não tem a arrogância das que se levam a cabo com sorrisos amigáveis. Não se vislumbram no branco absoluto aqueles olhares de quem sabe que vai ter, possuir, usar, lavar e vender. Abandonar. Na brancura do vazio não se está só, não há sequer solidão - é preciso conhecer e ter visto muitas gentes para se ser irremediavelmente só, na página solta de nada não há gentes. Pensam-se e fazem-se guerras só com letras de leis e processos, e tratados, insultos e assaltos - modernos. levados a cabo em entrelinhas, - versos mal entendidos, elogios prescritos de acordo com o câmbio actual. Em páginas e páginas pesadas de mofo, que é o que ganha a razão quando expira, afundam-se os professores e os educados. Para a selvajaria há já também manuais, e convenções, e associações mal disfarçadas, que uma gravata fica sempre bem.
As pessoas buscam o bem, a redenção, uma que sirva ao particular e que se escreva em testamento. Depois morrem sem querer, e o jornal dá-o a saber, junto com o patrocínio de pastas de dentes que mascaram o sorriso amarelo, prometendo um branco. Branco como este Branco. O Branco que não contém raiva, nem maldizer, nem pensamentos estropiados e virulentos.

Mas; distraí-me. Ainda agora era isto branco, e agora já é espelho baço de mim.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006

Desconforto

Qual é o mal, se Deus não proibiu?
Qual é afinal o mal, se há fome, sede, dor, sono constante, tosse, tão pouco original, é todo o dia.
Este homem é igual todo o dia, todos os dias. É, de profissão, vasculhador, especialista em caixotes de lixo. Não devia estar ali, onde o encontrei - em minha frente a dois metros - quando saí da loja.

(A partir da meia noite esta cidade é silenciosa, de silêncio composto por uma espécie de som estático sereno, e aqui e ali uma sirene vagarosa.)

O que este homem fez foi unicamente estender a mão, nem sei se foi exactamente pedir - pedir moedas, ou conforto do estômago, evidentemente -, mas foi esta a sua única atitude. A garrafa que trazia na outra mão ficou lá, a face desta pessoa não sofreu nenhuma alteração, nem micrométrica, continuou sem expressão alguma. É essa a expressão que lhe permite ser sempre o mesmo, pensar sempre o mesmo, não fala, não precisa de falar. Nem já deve lembrar-se de o fazer. Arma-se somente estendendo a mão, e já se sabe que esta arma, em todo o mundo e a todo o instante, é vencida e aniquilada por bombas, minas, balas e temperaturas nada cívicas às quatro horas da madrugada.

Não sei se este homem, cujo nome é a escuridão da pele, pensa que alguém faz alguma coisa por ele, ou se pensa que faz alguma coisa por alguém, ou por si. Só me foi impossível, por instantes, aperceber-me de alguma realidade que estivesse fora do corredor que ia desde ele até mim quando mexeu apenas ligeiramente os músculos do braço e esticou os ossos dos dedos. Nem que a avenida se rebentasse de napalm. . .
O que pensarão esses deuses das igrejas da cor desta palma de mão, e da minha hipocrisisa?

Conforto

Estava a sonhar com tudo o que alguma vez fui e já não sou. Estas sombras poentes surgiam-me enrodilhando-se, enovelando-se numa bola de trapos cósmica aos saltos no regaço de um gato vadio. Desce esta realidade sobre mim como uma rádio de mil cantores, sintonizada em nenhum, mil vezes eu dizendo coisas diferentes, cantando o pouco que sabia, mil variações.
Toda esta montanha imensa faz brotar o rio que sou, daqueles que às vezes se engana que nasce no mar. E estava a ficar muito confortável nesta minha confusão, uma que me vem de dentro e que portanto respeito profundamente.
E tenho hoje em mim o sorriso, quase indelével, de quem descobriu que estava a sonhar. Fiquei habilitado a escolher, de todas as confusões, a minha privada, a partilhar intimidades com os meus desígnios, de noite. Viciei-me os sentidos em ser eu.

sábado, 4 de fevereiro de 2006

Viajar






Nem dedos tenho para escrever de tanto saírem a correr para fora de mim à procura de um lugar para a mente poder pousar os olhos. Correm como loucos os insanes desmiolados...

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2006

Linha

Não custa saber que a nossa vida é para sempre, mas sim que isso é o que nós quisermos.
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