quinta-feira, 25 de maio de 2006

Os chinelos são pares únicos!

As histórias andam às rodas em rectas smi-redondas e parecem faíscas a apontarem para o céu, para o infinito de outras serenas e contadas histórias viciadas. O mesmo chão que alberga tantos pés durante tantos anos é desgastado e martelado pelas gentes despreocupadas e complacentes. É uma história de raiz, da ligação do homem ao universo de outros homens e terras…
Numa gare onde muitos comboios passam impessoais em direcção ao seu longo objectivo, esperava-se que passasse o último trabalhador activo da noite em direcção à última cidade. Poucos pés se encontravam lá, naquele local, que poderia ser igual e repetível em qualquer lugar do mundo, nas mesmas horas, com outros mesmos pés. O fiel portador pára e as raízes entram mas perdem os seus calos, as suas protecções que inevitavelmente nunca mais iriam ver. Os pés ficaram nus, despidos, pois eles procuram ser sempre iguais como as duas metades equitativas da anatomia humana. O gigante dono deles fica enfurecido mas logo percebe que tem de assentar as suas raízes noutros solos do pensamento, e depressa se alegra!
Contudo a raiz perdida estava lá, a emanar a sua energia, e outro pé, despido de sentido parou em frente a ela, na mesma gare onde milhares de pés passaram e não repararam a pobre e esquecida raiz activa. Criou-se assim um elo de ligação… as raízes lançam os humanos aos seus conhecimentos mais profundos. A troca estabeleceu-se e foi recuperada a raiz do gigante e o estreito laço selou-se em mais uma história incontável de pés universais que se cruzam nos seus chinelos.

terça-feira, 23 de maio de 2006

Submersão III

No escuro, foi com dificuldade que se apercebeu que o que se lhe tinha enrolado ao pé era a saia que fora despida algumas horas atrás, em indeterminado local. Estacou, a sua mente quase tão inerte quanto esta escuridão de quarto, só via preto e cor de pele. De onde estava, entregou-se ao fitar do vulto feminino que ocupava a diagonal da cama. Não distinguia o que era pele do que era lençol, admirava a mistura de ambos. A mulher pendia um braço para o chão, como se o seu corpo precisasse disso para não se confundir definitivamente com a cama, e a sua expressão séria, de quem parece dormir sobre assuntos de estado, inscrevia um concludente e carinhoso sorriso nos lábios dele. . .
Quem soubesse que isto era um sonho dele, e o visse nele enquanto sorria contemplando as suas recordações, estranharia decerto a sua expressão facial externa, de aflição. E era sempre na parte do sorriso que acordava. Invariavelmente, estava a meio da noite, escura, ocupando ele a diagonal de sua cama.

- Merda . . .

Meio minuto de esfregar os olhos sentado e levantou-se, na busca de um copo de água.

quarta-feira, 17 de maio de 2006

Submersão II

Atirou um suspiro, e ficou à espera de ver onde ele ia parar. Não conseguia deixar de repetir os mais ínfimos detalhes dos anúncios das televendas do dia anterior na sua mente, num pensamento paralelo àquele que se estava a entediar de estar atento à realidade em redor. Isto, sempre de cabeça pesada, apoiada pela mão. Já não suportava esta sua responsabilidade no emprego, que era tão importante mas não ajudava ninguém. De facto, tirava prazer de odiar comparar-se com um pisa-papéis, que não tem nenhuma relação com os papéis em si, nem faz parte da informação, mas que se se quebrar e deixar de servir, causaria uma tremenda e caótica desordem. Era um pilar de uma casa que nunca via reconhecida a sua vital função, sendo que o crédito ia parar sempre às quatro paredes e ao tecto. Tirava fotocópias num estabelecimento da especialidade, num sub-andar de um centro comercial.

Para ajudar, o dia estava a passar muito lenta e enfadonhamente. Os dias duplicavam de tamanho quando ela não estava. Através da porta da loja, e com a ginástica treinada dos olhos, mirava ao longe uma parte de um café quiosque do centro, a zona da máquina de café. E ela servia cafés. As alturas imediatamente antes das pessoas voltarem ao emprego eram quando o tempo parava. A fila para as fotocópias aumentava, mas só porque se demorava muito mais a contar as folhas e calcular as contas devidas. Isto porque toda a gente queria café àquela hora. . .Quando retomava a sua resolução de retomar o leme dos seus globos oculares, e satisfazia os pedidos pendentes de forma a deixar de ter pessoas como exigente companhia na loja, olhava para o relógio e tinha passado imenso tempo para quem o julgava parado. Viciou-se, sem tomar disso conhecimento, nesta sensação, enquanto se viciava nos caracóis dos cabelos dela.

Quando saiu do centro comercial no fim da tarde, já levava a preparação costumeira de quem vai sofrer uma carga brutal de décibeis e fumos, de tal ordem é o trânsito na avenida à hora em que sai do emprego. Olhou para o chão, tentando forçar os olhos a habituarem-se rapidamente ao brilho demasiado branco do passeio. E buscava com os olhos as pedras de calçada escuras, que rareformavam figuras no meio das cinzentas pedras brancas, sonhando vagamente com o que lhe faziam lembrar nesse dia. E a calçada portuguesa nas ruas de Lisboa por onde se movimentava era tão imprevisivelmente diversificada, que seria boa ideia os psicólogos tomarem daí exemplos para acrescentar aos seus testes de desenhos de manchas de tinta. Mais provável seria inventarem esses mesmos psicólogos um nome de síndrome para quem sonha partindo de pedras escuras da calçada.

Metro, comboio, autocarro... Quando inventassem mais meios de transporte, seria na certa obrigado a usar esses para além dos que já usa. A aventura diária onde mais emoções por segundo quadrado concentra é a sua ida para casa. Vai cansado, mas não consegue dormir com toda a tensão que requer o esforço titânico que faz por ter uma aparência e um modus operandi normais de um digno e sofisticado jovem cosmopolita. Gostaria de ir sonhando com dias melhores, mas não tira os olhos de toda a gente que vai na carruagem. Gostaria que ninguém reparasse nele, mas fica imensamente frustrado por isso acontecer. Leva consigo, no seu assento, as contradições como se fossem malabares que tivesse de zelar para que se mantivessem no ar. O seu pensamento sobe de volume, e, com ele, também toda a ambiência que o acompanha no tão pouco triunfal regresso a casa. Durante todo o caminho sente-se o mais prófugo dos seres, com toda a sua vida a decorrer, em potencial holográfico, noutro local qualquer do mundo. E é com isso que faz força para sonhar dez minutos antes de adormecer no seu leito. Entretanto, abriu a porta de casa, o corpo perdeu metade das forças, e sentiu que se esqueceu de viver por mais um dia. Prometeu que isso não iria acontecer, e estabeleceu um limite (que o seu inconsciente já conhece de cor, da frente para trás) de dois dias para que não se voltasse a esquecer. Foi acender a televisão para combater o frio que sentiu subitamente.

sexta-feira, 12 de maio de 2006

Submersão

Já estava farto dos gestos que executava enquanto maquinalmente lavava o seu corpo pela manhã. Pensou violentamente que não saía daquilo, todos os dias uma mesma coreografia que inventou enquanto pensava na vida, e que põe em prática enquanto não pensa em nada. Ou não quer pensar.
Desta vez, lançou caça a esta dança alheia a si e travou o braço esquerdo, mesmo quando este se preparava para erguer-se no ar, sujeitando o sovaco à aplicação, tão vigorosa quanto displicente, do meio sabonete que habitual e pontualmente por ali passava. Ficou parado e estranhou o barulho da água corrente, apenas tinha dado por ele neste momento. Deixando pender ligeiramente o queixo, apercebeu-se de uns centímetros a mais na barriga, que instintivamente camufla, e como eles permitem apenas a visão de metade dos seus pés.
Estava comiserando isto quando deu conta que a dança rebelde tinha prosseguido sem o seu consentimento, um tanto ou quanto mais apressada que o normal, e estava lavado.
Ao longo do dia, mas não todos os dias, cada vez mais surgiam momentos em que a continuidade do pensamento era interrompida, e substituida por uma outra voz, de dentro, uma voz que ele identificava como sendo ele mesmo, mas estranhamente mais leve. Nessas alturas, não sentia o peso que carrega durante todos os minutos, tal como se bebesse da fonte da juventude, sentia-se incrivelmente ágil, não tinha torpor algum na visão, nem os seus ouvidos doíam. Nestes segundos, talvez tivesse um canal aberto para a sua alma. E nestes breves segundos, atónito, sentia-se sempre completamente triste, incapaz de perceber onde estava, porque estava, para onde ia, incapaz sequer de reconhecer com quem estava.
Subitamente, o ruído invadia novamente os seus ouvidos, como, num mergulho, uma submersão, e novamente deixava de se aperceber deste, estava de volta ao quotidiano. Era uma pessoa normal a tempo inteiro, e vivia sonhando que um daqueles momentos esquisitos voltasse. Forçava, então, a solidão e ansiava que, contemplando, visse alguma coisa em si mesmo. É por isso que nunca queria estar com ninguém.
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